segunda-feira, 10 de junho de 2019




CARTA ABERTA A JOÃO MIGUEL TAVARES

Caro João Miguel,
Tomo a liberdade de tratar-te por tu. Somos afinal conterrâneos, apesar de não nos conhecermos. A nossa idade é muito próxima. Imagino que, como eu, tenhas nascido no velho Hospital da Misericórdia, em pleno Rossio portalegrense; tu, em Setembro, eu dois meses depois. Escrevo-te depois de ter escutado pela televisão, comovido, a tua intervenção como responsável pelas comemorações do Dia de Portugal. Não poderia deixar de fazê-lo ao ouvir-te evocar o teu avô que, ao fundo da Rua de Elvas, dava sopa àqueles que dela precisavam, ao sentir o significado daquela casa ao cimo da Avenida Frei Amador Arrais que foi e é a tua e, sobretudo, ao ter contido com alguma dificuldade as lágrimas quando te ouvi mencionar o destino de tantos portalegrenses que, para cumprirem o seu destino, se viram obrigados a deixar o seu concelho.
Poderia ficar por aqui e agradecer-te, com a maior profundidade. Mas cortaria metade da verdade. Poderia dizer que o meu destino foi igual ao teu e ao de tantos da nossa terra. Mas não contaria a história toda, porque é mentira.
Se bem conheces o nosso concelho, e acredito que sim, sabes que o destino daqueles que nasceram e cresceram com a democracia não foi igual para todos. Os filhos do funcionalismo público e das elites locais, seja lá isso o que for, nascidos e criados na cidade, nunca tiveram o mesmo tratamento que os filhos dos operários, das costureiras e dos pequenos agricultores que tiveram como destino crescer nas aldeias da serra e dos arredores. Os sacrifícios, acredito, seriam semelhantes em cada família; mas enquanto os sacrifícios da classe média citadina podiam oferecer aos seus a universidade, fora de Portalegre, quem vinha de outros meios era obrigado a contentar-se com os cursos ministrados pelas escolas do Instituto Politécnico de Portalegre, mesmo que tivesse notas e capacidades para marchar até outras paragens. Como dizia uma grada senhora, era uma espécie de prémio de consolação.
Estou grato à democracia por ter criado instituições de ensino superior em pequenas cidades de província; se assim não fosse, ter-me-ia ficado pelo ensino secundário e ver-me-ia transformado num apagado empregado bancário ou de secretaria, talvez num contabilista, mesmo que tivesse asas para outros voos. Assim sendo, filho de um operário da Robinson e de uma costureira, vindo das serranias das Carreiras, não tirei (é certo) o curso de História que sempre ambicionei ou o de Geografia e Planeamento Regional para o qual tinha altas classificações, apesar de ter sido um dos agraciados com o Prémio Francisco Fino para os melhores alunos do secundário do nosso município, mas desenrasquei-me com uma licenciatura em ensino de Português e Francês, tirada na nossa cidade, porque para ela ainda ia havendo dinheiro, sabe Deus com que esforço e privações, embora para mais fosse impossível. Sem cunhas e sem parentes que me abrissem a porta fora de Portalegre, tive de me contentar com o que havia e dar o meu melhor, sabendo bem demais, mas tentando esquecer, que partia para a meta da vida numa posição diferente da de outros meus conterrâneos...
Foi no final dessa licenciatura que comecei a tomar consciência de outra realidade. Aluno no último ano do nosso saudoso Carlos Garcia de Castro, poeta grande cujo mérito, refugiado na interioridade, nunca foi reconhecido como deveria ter sido pelo "meio literário", foi ele quem me abriu os olhos para o que Portalegre era há 25 anos e, infelizmente, continua a ser. Nunca esquecerei a sua frase: "Concorra para sair daqui. Nesta terra nunca lhe perdoarão ser filho de um operário e de uma costureira." Concorri, mas passados anos caí na tentação de aceitar um convite para regressar. Durante três anos, fui professor na instituição de Ensino Superior onde recebera a minha formação inicial. Seduzido para a política por estratégias ardilosas, estive quase a entrar para o partido que agora nos governa. Acontece que, no momento decisivo, me deu para ser independente e recusei atravessar para esse lado. Paguei caro. Não tardou muito que deixasse de haver lugar para mim e, apesar de ter o meu mestrado concluído e iniciado o doutoramento, fui preterido. Eu tive de regressar ao exílio e quem ficou, apenas com a licenciatura (!), teve o lugar garantido durante vários anos, talvez por ser filha de um ex-autarca do Partido da mão fechada. Só então percebi tudo quanto Carlos Garcia de Castro me dissera. Em Portalegre, cópia em miniatura do Portugal que abomina o mérito e tu hoje denunciaste com a firmeza que te conhecemos, não se perdoa a falta de currículo familiar e muito menos pensarmos pela nossa cabeça, sobretudo se isso fizer sombra a alguém bem instalado ou puser em causa o seu pequeno poder ou a sua mediocridade.
Sou hoje um portalegrense exilado que bem gostaria de curar-se dessa doença que se chama Portalegre. Teria uma vida muito mais tranquila. Não nego: o exílio tem-me trazido muitos momentos felizes, algumas alegrias que nunca atingiria se tivesse ficado pelo Corro lagóia. Mas, confesso-te, são alegrias amargas que, a cada momento, me recordam essa condição de migrante por vontade alheia. A minha árvore tem raízes e custa-me saber que os seus frutos são colhidos por outros porque da minha terra existe uma incessante e nefasta ventania que lhe vergou o tronco e fez crescer a copa noutra direcção.
Sabes, João, ao ouvir o teu discurso de hoje - que só não me fez verter lágrimas porque, caramba!, um homem não chora - vi pela televisão os meus pais aplaudindo-te. Também devem ter sentido fundamente as tuas palavras, lembrando o seu filho único que a várias centenas de quilómetros as ouvia. Portugal ainda é uma Portalegre ampliada, porque, como dizia Raul Brandão a propósito de Gomes Freire de Andrade, aqui não ganham os inteligentes, mas (para nossa desgraça colectiva) os mais espertos.
Bem hajas pelas palavras que tiveste a coragem de dizer. Espero que a voragem deste país não as apague tão depressa. Um abraço firme e comovido do teu conterrâneo

quinta-feira, 2 de maio de 2019


… E A MEMÓRIA DA CIDADE QUE SE LIXE

Lê-se na página da sucursal portalegrense do Partido Socialista que, em Assembleia Municipal, fez aprovar – apenas com a abstenção do PSD – a atribuição do nome de Mário Soares à “popularmente conhecida rotunda do navio”. Parece que esta decisão já mereceu a concordância da comissão municipal de toponímia. Tanto quanto vim a saber, a sucursal concelhia do Partido Comunista Português, para não ficar atrás e cobrando, quiçá, o voto favorável dos seus eleitos, propôs ou vai propor que outra rotunda ou avenida ou rua lagóia venha a ter o nome de Álvaro Cunhal. (Se tal se concretizar, o que não duvido, teremos uma verdadeira geringonça portalegrense – só faltando o beco Miguel Portas ou João Semedo ou Francisco Louçã ou Catarina Martins ou Fernando Rosas para a trempe ficar completa...)
Ainda correu pela cidade e arredores que a ideia inicial dos comunistas era rasurar a designação “Avenida do Bonfim”, nascida do santuário homónimo onde tem início, tão querido das gentes da cidade onde nasci. Mas parece que a coisa ficou pelo caminho, talvez por saberem que o regulamento municipal impede (ou desaconselha) a substituição de nomes históricos oficialmente consagrados – ou, mais provavelmente, por se lembrarem que essa artéria passaria a desembocar na rotunda agora soarista, o que provocaria não poucos engulhos aos dois adversários políticos, caso cá estivessem, vendo-se assim de braço dado, quase aos beijinhos, na pública rotunda. Mas adiante. Confesso que gostaria de ouvir, vinda das profundas, a voz cava do nunca desmentido devoto das práticas e doutrinas soviéticas dizendo ao meu ouvido: “Olhe que não, olhe que não…” A mais de duzentos quilómetros de Portalegre tenho todavia informações seguras de que tal má nova é mesmo certa – verdade, verdadinha. E lamento. Funda e fundadamente lamento!
Não está em causa o mérito ou demérito das figuras que, agora, em vésperas de eleições, um punhado de políticos do burgo quer reverenciar à custa da identidade da urbe, nem sequer o facto de tais personalidades pouco ou nada terem que ver com a cidade. Tiveram qualidades e defeitos como toda a gente. Nalgumas situações contribuíram para o bem do povo, noutras prejudicaram-no e noutras foram impedidos (graças a Deus!) de prejudicá-lo. Estão em causa os critérios e os jogos políticos e sociais que movem a exaltação de Cunhal e Soares e apagam, ao mesmo tempo, Fernando Pessoa (sim, esteve em Portalegre!), Humberto Delgado, Salgueiro Maia, Matilde Rosa Araújo (sim, viveu na cidade!), Ramalho Eanes, Amaro da Costa ou, até, para falar nos portalegrenses de nascimento ou de coração, Soror Isabel do Menino Jesus, Eusébio Leão, Joaquim Miranda da Silva, Pe. José Patrão, Carlos Garcia de Castro ou Carrilho da Graça... Está sobretudo em causa o modo como se desrespeita e/ou menospreza com estas e outras decisões a memória urbana e histórica de Portalegre, expressa no nome legítimo dos seus lugares, criado pelo povo que neles viveu ao longo de séculos. (Seria indigno, pergunto, o nome ancestral do local, “Moinho de Vento”? Causaria brotoeja uma referência à Fábricas das Sedas que aí existiu?)
Estudei com demora a toponímia da cidade e as motivações que a foram criando, alterando, rasurando ou apagando. Vem tudo num longo artigo intitulado “Toponímias de Portalegre: da Idade Média ao século XX”, publicado há uns anos no nº. 12 da “Ibn Maruán – Revista Cultural do Concelho de Marvão” (hoje a necessitar de reedição revista e aumentada). Sei bem o que valem as chamadas “comissões de toponímia”, como são nomeadas, o que as move, a sua competência e os regulamentos que fazem, desfazem e aplicam. Não esqueço a ligeireza do conhecimento que, salvo raras excepções, possuem da História e da memória colectiva – e o (des)respeito que têm por ela. Basta-me recordar muitas e muitas das suas incompreensíveis (ainda que bem intencionadas) decisões – valorizando gente com escasso valor e ostracizando os que deveras o tiveram. Chega-me relembrar pelo menos um dos seus pretéritos membros (entretanto falecido) que, além de ter inventado uma “Rua dos Aleatórios” na toponímia setecentista de Portalegre, defendia a eliminação de grande parte dos nomes antigos como coisa bolorenta e pouco civilizada… Já não me deixa, pois, boquiaberto a forma leviana e por vezes caricata com que nomeiam as novas vias de circulação. Não me espanta, ainda, que as mudanças toponímicas continuem a ser uma triste realidade, mesmo que a população portalegrense não as queira – pois nunca sobre tal assunto foi, é ou será consultada. Pelos vistos a salvaguarda, valorização e divulgação deste património imaterial ainda não chegou à terra onde nasci (nem a boa parte do nosso país, diga-se em abono da verdade). Com desgosto o escrevo.
Dir-me-ão que as tentativas de rasura não são de agora, que as homenagens interesseiras são já velhas. Têm toda a razão. Começaram, ainda que timidamente, no século XIX, com o regime liberal. O nome das praças, das alamedas, das ruas, das travessas e até dos becos passou a ser campo fértil de todas as propagandas, de todos os interesses e de todas as vaidades. Houve é certo boas intenções, embora com maus resultados. Graças a Deus nunca tivemos em Portalegre autarcas que durante o seu mandato impusessem o seu nome a ruas e edifícios, como sucedeu noutras terras do Alto Alentejo e do Entre Douro e Minho. Mas o fluído canino das várias tendências políticas e de muitas vaidadezinhas individuais ou de grupo foi manchando não poucos nomes ancestrais da nossa cidade e de quase todas as terras do nosso país.
Ironia das ironias, o povo (que nunca foi tido nem achado nessas artimanhas e sobrancerias) esteve-se sempre lixando para os nomes novos, a não ser quando atribuídos a espaços urbanizados de novo – e ainda assim nem sempre. Passados muitos decénios (por vezes mais de um século) sobre essas alterações decretadas pelo sectarismo político das vereações, continuou a usar os topónimos antigos. Os exemplos em Portalegre são eloquentes. A rua Alexandre Herculano continua a ser de Santo André, a 31 de Janeiro teima em ser dos Canastreiros, o parque Miguel Bombarda, a avenida George Robinson e a rua de Olivença nunca deixarão de ser Corredoura, a rua 5 de Outubro nunca abdicou de ser Direita, o largo 28 de Janeiro pertence ainda à Fonte Nova, a rua Mouzinho de Albuquerque apenas do Pirão é chamada, não esquecendo a Luiz Barahona que do Castelo nunca se livrará, a Cândido dos Reis que nunca esconderá o Cano, a Almeida Garrett que nos conduz ainda ao Mercado (embora ele já esteja noutras partes), a França Borges que persiste na sua referência ao Bargado, o largo Serpa Pinto que adoptou (demolida a igreja da Madalena aí existente) a boneca de uma fonte...
A lista poderia continuar, mas não vale a pena aborrecer os leitores. Convém todavia registar com irónico agrado as designações populares bem recentes que os sábios transeuntes vão já dando a outros lugares com urbanização contemporânea, ignorando com orgulhosa altivez o desrespeito de que são alvo – neste e noutros domínios – por uma boa parte dos seus representantes eleitos. Ou alguém tem dúvidas de que a agora chamada “Rotunda Mário Soares” continuará a ser para todos a tão simples “rotunda do navio”? Não tenho quaisquer dúvidas. Afinal, nestes e noutros achados, “o povo é quem mais ordena”. Por mais que isso provoque comichões nalguns que se têm como procuradores sobranceiros da população.

RUY VENTURA 
(Texto publicado a 2/5/2019 no jornal portalegrense "Alto Alentejo"; foto de RV.)

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