quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

CARLOS GARCIA DE CASTRO


TARRO – CAFÉ-RESTAURANTE

O Tarro fica na cidade nova
e quase sempre resplandece ao sol.

- Para ir ao Tarro é preciso um estilo.

À noite, na esplanada ao pé do lago,
lá onde voga um par de cisnes negros
no mesmo tom credencial dos bens
que ali se dão a consumir sorrisos,
crianças sociais de bicicleta
prosseguem o à-vontade de mostrar
como se é, se está ou se parece.

Comercial, seu nome de Café,
de Restaurante, de Snack-Bar – O Tarro
não é concisamente um edifício,
vale um desejo e faz como um perfume
quando se expande e torna indiscrição.

Ia dizê-lo a víscera da Cidade...

desta cidade de ambições solúveis,
bela amante que se dá e foge!
ali palpita na leveza a forma
do mal por bem dizer grandezas mínimas.

Já se lá vai para namorar sentado,
escandalizar – de amor, ou posição
que, embora vaga para fazer convites,
é necessário para sonhar política:

há sempre um caso para contar no Tarro!

Lá estão à porta adolescentes vários,
contemplativos, a fumar porquês,
nos automóveis dos rapazes ricos,
motor e chapa, as vibrações da alma.

Somos do Tarro! andamos a estudar!
nas escolas, no Colégio, no Liceu,
e os nossos pais, os transigentes, pagam,
dão-nos vontades de até ir para a Tropa.
São bons estes degraus para nos sentarmos
a conversar e a discutir justiça,
são bons para nos ouvirmos em silêncio,
pasmados de remorso e de preguiça.

A certa hora habitual conjunta,
quase só vêm os senhores doutores,
tanto os que o são de conhecida fé,
como os da fama pessoal, ambígua.

Então se evolam os odores do Tarro!

lembram as missas de solene incenso
as cigarrilhas do vapor lustroso
que os gestos dignifica e os sapatos...

- ninguém lhe escapa ao gozo, se lá entra.

Daí que este retrato, esta paisagem,
banal decerto na Província magna,
não nos aperta, é como num museu.
Aqui, porém, cá dentro, em Portalegre,
onde inocência, pequenez, vaidade,
incrível, genial contradição
da sua urbanidade e vocativo,
são a virtude vegetal dos pombos,
- isso já custa, quase faz um perigo,
diria o acidente de um juízo:

- olhar o passarinho, e ver-lhe as penas
como se elas e a cor do seu verniz
logo soubessem às carninhas mansas.

(in Os Lagóias e os Estrangeiros, Câmara Municipal de Portalegre, 1992)

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007


O MENINO JESUS DAS CARREIRAS

Quem visita as igrejas da região de Portalegre dá-se conta de uma intensa devoção à humanidade de Cristo. Incentivada, segundo creio, pelas pregações dos Frades Menores (aí presentes desde a fundação do convento de S. Francisco, no séc. XIII), é visível tanto na sua versão pública quanto em versões privadas, de índole popular. É rara a igreja onde não existe uma imagem de Jesus. Entre elas, merecem especial carinho as esculturas de Cristo ainda criança, geralmente chamadas “Menino Jesus”, embora o seu nome oficial seja “Menino Deus” ou “Salvador do Mundo”, podendo ser ainda a materialização do culto dirigido ao “Nome de Jesus”.
Embora o povo junte as três designações oficiais numa forma mais simples e carinhosa, normalmente cada uma delas tem características iconográficas próprias. Apresentando-se todas de pé, o “Salvador do Mundo” tem sempre numa das mãos o orbe, isto é, o mundo, podendo este servir mesmo de pedestal. O “Menino Deus” geralmente abençoa com a mão direita, enquanto a esquerda tende a segurar uma vara (o ceptro?). O “Nome de Jesus” – conceito verbal, demasiado intelectualizado, que escolheu o Divino Infante para se representar – pode aparecer em qualquer das formas escultóricas.
A devoção ao Menino é das mais antigas que se regista em Carreiras (Portalegre). A primeira referência que a ela conheço data de 1544, ano em que António Fernandes deixa ao “menino IESUS nas Carreyras quinhentos reis de esmola”. Que devoção oficial deu origem ao “Menino Jesus” das Carreiras? A resposta surge ainda no século XVI através do testamento de Gaspar Travassos (1592). Nele doa à igreja de S. Sebastião várias toalhas “todas de beirame”, uma delas para o altar do “nome de iesus”. Em 1659 é ainda essa a designação da confraria que promovia o seu culto. Só em meados de setecentos o nome muda para “Menino Deus”, adequado à iconografia antes apontada. Nessa altura, o Menino Jesus deixa, contudo, de ser titular do altar do Evangelho, dando lugar a um Cristo adulto, o Crucificado, mais tarde substituído por um Senhor da Paciência (que viria a desaparecer na segunda metade do séc. XIX, em benefício de um belo Santo António proveniente, é minha convicção, do extinto convento portalegrense do mesmo nome). Encontramo-lo em 1898 no altar-mor, numa posição privilegiada. Aí se manterá até 1944, colocando-se no seu lugar a Senhora de Fátima. Até essa data, era Ele quem abria todas as procissões das Carreiras, num andor barroco, ainda existente.
Recolhido na sacristia, continuou a ser cuidado pelas zeladoras do templo que, com desvelo, lhe mudavam os vestidos. Não se tratando de uma imagem “de roca”, teve o mesmo destino de muitas outras esculturas, que chegaram a ser amputadas para que vestimentas (de que não precisavam) assentassem bem. No caso presente, o braço que abençoava foi arrancado, para se tornar articulado... Tudo prova de uma devoção intensa, mas pouco esclarecida. A mesma que, talvez no século XVIII, mandou pôr uns olhos de vidro na imagem e promoveu uma nova pintura, pouco cuidadosa, esbranquiçada, que cobriu a original, muito mais bela e realista.
Esta situação encontrou em 2004 o padre Alberto Jorge quando decidiu mandar restaurar o Menino. O trabalho foi entregue a uma técnica consciente que restituiu à imagem a sua dignidade antiga, fazendo a sua reintegração cromática. Regressado, foi devolvido ao altar-mor, onde hoje abençoa os seus devotos, na beleza da sua nudez original (representação da Verdade), nascida talvez no séc. XVI ou XVII.

(in O Distrito de Portalegre)

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007


UM LIVRO HUMILDE E RIGOROSO

Deveria ser uma redundância afirmar que qualquer trabalho de investigação que se edite deve ser fruto de uma investigação metódica, rigorosa e humilde. Infelizmente, na região em que habitamos é ainda hábito pôr nos píncaros publicações de alguns curiosos que, apesar de bem relacionados socialmente, mais não produzem do que veículos de enganos (às vezes sumptuosos, graças aos orçamentos municipais), transportadores de leituras coxas e, até, de invenções, promotoras da ignorância.
O estudo que Rosário Salema de Carvalho agora publicou sobre a igreja de Santa Maria da Devesa de Castelo de Vide está nos antípodas deste cenário de enganos. Trata-se de um trabalho dotado de rigor assinalável que, sem ser arrogante, consegue ser audaz nas suas propostas. O município castelovidense é, diga-se de passagem, um espaço afortunado. Tanto no que respeita aos trabalhos arqueológicos quanto no que concerne às diversas publicações historiográficas, tem tido a sorte de assistir a conscientes explorações, leituras e divulgações do seu património, graças ao trabalho de diversos autores dotados de um verdadeiro “amor à terra”, ao empenho de grupos da chamada “sociedade civil” e à clarividência de boa parte dos seus autarcas da história recente.
Esta monografia encomendada e em boa hora editada pela Câmara Municipal passa a ser um marco na historiografia local, a par de outros textos basilares, como por exemplo o estudo meticuloso do arquitecto Pedro Cid sobre as fortificações medievais da vila. Passando em revista muita da documentação existente (alguma inédita) sobre a igreja de Santa Maria, oferece aos leitores uma viagem no tempo, que abarca todo o devir histórico deste templo marcante na vila e em toda a região. Desfazem-se equívocos, como o que situava a fundação do edifício primitivo em 1311. Revelam-se surpresas, como a do aproveitamento de uma torre sineira quinhentista na edificação actual, iniciada em finais do século XVIII, a da sobrevivência de vestígios do portal do século XVII no que agora podemos contemplar ou a da existência de um fragmento de sepultura medieval nas escadas de acesso ao coro. Traçam-se genealogias artísticas, como as que ligam a esmagadora volumetria da matriz castelovidense e a sua decoração interna aos programas artísticos desenvolvidos na basílica da Estrela ou das igrejas da Baixa pombalina, em Lisboa.
Neste livro – prefaciado pelo historiador Fernando António Baptista Pereira – a autora (que já assinara um interessante artigo sobre o programa artístico barroco da igreja do Salvador do Mundo, a necessitar de edição em livro, para melhor e maior divulgação fora dos círculos especializados) avança ainda com propostas corajosas, se bem que contestáveis. Toda a sua leitura da reconstrução manuelina de Santa Maria da Devesa assenta, por exemplo, na identificação das igrejas desenhadas por Duarte d’ Armas em 1509-1510. Os dados são tentadores, mas carecem ainda assim de comprovação arqueológica, pois não é inequívoco que o templo apontado como sendo Santa Maria realmente o seja... O seu trabalho crítico cauteloso leva Rosário Carvalho, por outro lado, a afirmar que a imagem de Santa Maria da Devesa se enquadra “na produção coimbrã da segunda metade do século XV, na órbita de um mestre ainda não identificado”. Contrariando parte desta afirmação, Carlos Alberto Ferreira de Almeida e Mário Jorge Barroca (no 2º volume da História da Arte em Portugal, ed. Presença) afirmam, no entanto, que a escultura gótica nasceu das mãos ou da oficina de Mestre João Afonso (escultor coimbrão activo entre 1439 e 1469), com afinidades com outra Santa Maria, a de Marvão.
Uma das maiores qualidades deste interessantíssimo livro é, no entanto, a humildade, na sua ligação à terra, ao húmus, e na sua consciência da transitoriedade de qualquer investigação científica, como esta. São significativas as palavras finais de Rosário Salema de Carvalho nesta obra fundamental: “[...] avançámos com diversas possibilidades e apontámos várias campanhas de obras, que nos pareceram válidas em face da documentação disponível. Tal não significa, de forma alguma, que num futuro próximo, novos dados possam pôr em dúvida ou até inviabilizar o que agora defendemos. / Parece-nos, pois, que ficou provada a importância de Santa Maria da Devesa como um bem patrimonial de singular importância no contexto da história regional. É, por conseguinte, como tal, que o edifício merece ser preservado e transmitido às gerações vindouras de Castelo de Vide.

(in Notícias de Castelo de Vide)

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007


HUMILHAR JOSÉ DURO
EXALTAR D. JOÃO III


Não foi fácil encontrar na Corredoura a nova versão do monumento ao poeta portalegrense José Duro. Depois de ler o oportuno e indignado artigo de Bentes Bravo no Fonte Nova, tentei encontrá-lo por entre a vegetação que, felizmente, se manteve no jardim de Portalegre, sobrevivente às obras devastadoras do Programa Pólis. Mas lá estava, envergonhado por detrás dos troncos de um alandro.
Como se não bastasse a sorte de José Duro, “poeta desgraçado” enjeitado à nascença e morto aos 24 anos, confirmou-se agora a desconsideração dos responsáveis autárquicos da cidade em que nasceu. Já quando deram o seu nome a um larguito, não souberam inscrever na placa toponímica a verdadeira data de nascimento (1875 e não 1860!), erro que permaneceu até aos nossos dias. Agora resolveram demolir o monumento com que fora homenageado pelos estudantes dos anos ’40 e substituí-lo por uma versão feia e sem arte, sem qualquer beleza para além do medalhão original, escondida por entre os arbustos do jardim.
Tudo isto seria apenas sintoma de novo-riquismo arrogante (que faz obra, necessária ou desnecessária, sem respeitar a memória dos locais nem os cidadãos), não coincidisse no tempo com a promoção de outra estátua citadina a uma visibilidade imerecida. A poucos metros de José Duro, D. João III, até há pouco discreto num recanto do jardim do Tarro, passou a ocupar um altíssimo pedestal junto das novas instalações da Câmara Municipal. Sem mérito. Dirão que assinou o alvará que elevou Portalegre a cidade em 1550... Responder-lhes-ei que só foi responsável pela assinatura do diploma, pois todo o mérito da promoção de Portalegre se deve à presença, durante a primeira metade do século XVI, do bispo D. Jorge de Melo na então vila da diocese da Guarda e às influências da rainha D. Catarina de Áustria junto do marido para que promovesse Julián d’ Alva, seu capelão, à categoria de bispo. Qualquer cidadão informado e sério sabe isto. A D. Jorge de Melo, a D. Julião de Alva e a D. Catarina de Áustria não prestou Portalegre ainda qualquer homenagem que se visse – e é pena, porque mereciam. D. João III vê-se agora, infelizmente, elevado quase aos céus (sem ter no entanto no seu pedestal, coitado!, direito a nome ou qualquer outro letreiro explicativo).
Tudo isto seria, como disse, sintoma de ignorância, de inépcia, de novo-riquismo, de miopia histórica, etc.. Em tal não acredito, no entanto. Quando, num mesmo momento cronológico, se promove um rei e se esconde um poeta, isto constitui sintoma de um olhar sobre a sociedade, duma inversão de valores que transborda para a gestão política de um concelho. De forma simbólica, com consciência ou não, os responsáveis por estes dois actos transmitiram uma mensagem aos portalegrenses e a quantos visitam a cidade:
Aqui, nesta terra, importa-nos o poder (político, social, económico ou de outra índole, legítimo ou até, quem sabe?, ilegítimo). Consequentemente, desprezamos a Poesia e quanto ela representa de liberdade, de democracia, de imaginação e de criatividade. E quem diz Poesia, diz Arte (a verdadeira Arte e não simulacros pseudo-artísticos que só enganam distraídos, ingénuos, tolos ou ignorantes) ou diz Cultura (a verdadeira, a que nasce da liberdade dos seres e da sua capacidade criativa e imaginativa).
E nem vale a pena ir buscar José Régio, como é costume, pois há muito se vem mutilando a sua memória, quando se recorda apenas a “Toada de Portalegre” (deturpando frequentemente o seu significado) e se lança no esquecimento o seu olhar realista e crítico sobre a cidade, expresso nas novelas “Davam grandes passeios aos domingos” e “Alicerces da Realidade”.
Nada nasce isolado, infelizmente. Se na anterior vereação o presidente da Câmara pôs à frente do Pelouro da Cultura um homem que soube divulgar junto da população do concelho a obra reconhecida e independente dos criadores, vemos agora no mesmo lugar alguém que quase deixou de ser vereador da Cultura para ser apenas um vereador dos espectáculos (interessantes ou indignos), bem pagos pelo dinheiro dos contribuintes.
Com este cenário, não admira pois que José Duro seja humilhado e D. João III exaltado. Poderia ser de outro modo, numa cidade onde o novo-riquismo substituiu boa parte do bom-senso arquitectónico, em que arrogância material e simbólica quase apagou a humildade, onde o espírito foi em muito suplantado pela matéria – por obra e graça de alguns gestores municipais e de alguns “influentes”? Julgo que não.
(in O Distrito de Portalegre)

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