quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007


HUMILHAR JOSÉ DURO
EXALTAR D. JOÃO III


Não foi fácil encontrar na Corredoura a nova versão do monumento ao poeta portalegrense José Duro. Depois de ler o oportuno e indignado artigo de Bentes Bravo no Fonte Nova, tentei encontrá-lo por entre a vegetação que, felizmente, se manteve no jardim de Portalegre, sobrevivente às obras devastadoras do Programa Pólis. Mas lá estava, envergonhado por detrás dos troncos de um alandro.
Como se não bastasse a sorte de José Duro, “poeta desgraçado” enjeitado à nascença e morto aos 24 anos, confirmou-se agora a desconsideração dos responsáveis autárquicos da cidade em que nasceu. Já quando deram o seu nome a um larguito, não souberam inscrever na placa toponímica a verdadeira data de nascimento (1875 e não 1860!), erro que permaneceu até aos nossos dias. Agora resolveram demolir o monumento com que fora homenageado pelos estudantes dos anos ’40 e substituí-lo por uma versão feia e sem arte, sem qualquer beleza para além do medalhão original, escondida por entre os arbustos do jardim.
Tudo isto seria apenas sintoma de novo-riquismo arrogante (que faz obra, necessária ou desnecessária, sem respeitar a memória dos locais nem os cidadãos), não coincidisse no tempo com a promoção de outra estátua citadina a uma visibilidade imerecida. A poucos metros de José Duro, D. João III, até há pouco discreto num recanto do jardim do Tarro, passou a ocupar um altíssimo pedestal junto das novas instalações da Câmara Municipal. Sem mérito. Dirão que assinou o alvará que elevou Portalegre a cidade em 1550... Responder-lhes-ei que só foi responsável pela assinatura do diploma, pois todo o mérito da promoção de Portalegre se deve à presença, durante a primeira metade do século XVI, do bispo D. Jorge de Melo na então vila da diocese da Guarda e às influências da rainha D. Catarina de Áustria junto do marido para que promovesse Julián d’ Alva, seu capelão, à categoria de bispo. Qualquer cidadão informado e sério sabe isto. A D. Jorge de Melo, a D. Julião de Alva e a D. Catarina de Áustria não prestou Portalegre ainda qualquer homenagem que se visse – e é pena, porque mereciam. D. João III vê-se agora, infelizmente, elevado quase aos céus (sem ter no entanto no seu pedestal, coitado!, direito a nome ou qualquer outro letreiro explicativo).
Tudo isto seria, como disse, sintoma de ignorância, de inépcia, de novo-riquismo, de miopia histórica, etc.. Em tal não acredito, no entanto. Quando, num mesmo momento cronológico, se promove um rei e se esconde um poeta, isto constitui sintoma de um olhar sobre a sociedade, duma inversão de valores que transborda para a gestão política de um concelho. De forma simbólica, com consciência ou não, os responsáveis por estes dois actos transmitiram uma mensagem aos portalegrenses e a quantos visitam a cidade:
Aqui, nesta terra, importa-nos o poder (político, social, económico ou de outra índole, legítimo ou até, quem sabe?, ilegítimo). Consequentemente, desprezamos a Poesia e quanto ela representa de liberdade, de democracia, de imaginação e de criatividade. E quem diz Poesia, diz Arte (a verdadeira Arte e não simulacros pseudo-artísticos que só enganam distraídos, ingénuos, tolos ou ignorantes) ou diz Cultura (a verdadeira, a que nasce da liberdade dos seres e da sua capacidade criativa e imaginativa).
E nem vale a pena ir buscar José Régio, como é costume, pois há muito se vem mutilando a sua memória, quando se recorda apenas a “Toada de Portalegre” (deturpando frequentemente o seu significado) e se lança no esquecimento o seu olhar realista e crítico sobre a cidade, expresso nas novelas “Davam grandes passeios aos domingos” e “Alicerces da Realidade”.
Nada nasce isolado, infelizmente. Se na anterior vereação o presidente da Câmara pôs à frente do Pelouro da Cultura um homem que soube divulgar junto da população do concelho a obra reconhecida e independente dos criadores, vemos agora no mesmo lugar alguém que quase deixou de ser vereador da Cultura para ser apenas um vereador dos espectáculos (interessantes ou indignos), bem pagos pelo dinheiro dos contribuintes.
Com este cenário, não admira pois que José Duro seja humilhado e D. João III exaltado. Poderia ser de outro modo, numa cidade onde o novo-riquismo substituiu boa parte do bom-senso arquitectónico, em que arrogância material e simbólica quase apagou a humildade, onde o espírito foi em muito suplantado pela matéria – por obra e graça de alguns gestores municipais e de alguns “influentes”? Julgo que não.
(in O Distrito de Portalegre)

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