segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007


O MENINO JESUS DAS CARREIRAS

Quem visita as igrejas da região de Portalegre dá-se conta de uma intensa devoção à humanidade de Cristo. Incentivada, segundo creio, pelas pregações dos Frades Menores (aí presentes desde a fundação do convento de S. Francisco, no séc. XIII), é visível tanto na sua versão pública quanto em versões privadas, de índole popular. É rara a igreja onde não existe uma imagem de Jesus. Entre elas, merecem especial carinho as esculturas de Cristo ainda criança, geralmente chamadas “Menino Jesus”, embora o seu nome oficial seja “Menino Deus” ou “Salvador do Mundo”, podendo ser ainda a materialização do culto dirigido ao “Nome de Jesus”.
Embora o povo junte as três designações oficiais numa forma mais simples e carinhosa, normalmente cada uma delas tem características iconográficas próprias. Apresentando-se todas de pé, o “Salvador do Mundo” tem sempre numa das mãos o orbe, isto é, o mundo, podendo este servir mesmo de pedestal. O “Menino Deus” geralmente abençoa com a mão direita, enquanto a esquerda tende a segurar uma vara (o ceptro?). O “Nome de Jesus” – conceito verbal, demasiado intelectualizado, que escolheu o Divino Infante para se representar – pode aparecer em qualquer das formas escultóricas.
A devoção ao Menino é das mais antigas que se regista em Carreiras (Portalegre). A primeira referência que a ela conheço data de 1544, ano em que António Fernandes deixa ao “menino IESUS nas Carreyras quinhentos reis de esmola”. Que devoção oficial deu origem ao “Menino Jesus” das Carreiras? A resposta surge ainda no século XVI através do testamento de Gaspar Travassos (1592). Nele doa à igreja de S. Sebastião várias toalhas “todas de beirame”, uma delas para o altar do “nome de iesus”. Em 1659 é ainda essa a designação da confraria que promovia o seu culto. Só em meados de setecentos o nome muda para “Menino Deus”, adequado à iconografia antes apontada. Nessa altura, o Menino Jesus deixa, contudo, de ser titular do altar do Evangelho, dando lugar a um Cristo adulto, o Crucificado, mais tarde substituído por um Senhor da Paciência (que viria a desaparecer na segunda metade do séc. XIX, em benefício de um belo Santo António proveniente, é minha convicção, do extinto convento portalegrense do mesmo nome). Encontramo-lo em 1898 no altar-mor, numa posição privilegiada. Aí se manterá até 1944, colocando-se no seu lugar a Senhora de Fátima. Até essa data, era Ele quem abria todas as procissões das Carreiras, num andor barroco, ainda existente.
Recolhido na sacristia, continuou a ser cuidado pelas zeladoras do templo que, com desvelo, lhe mudavam os vestidos. Não se tratando de uma imagem “de roca”, teve o mesmo destino de muitas outras esculturas, que chegaram a ser amputadas para que vestimentas (de que não precisavam) assentassem bem. No caso presente, o braço que abençoava foi arrancado, para se tornar articulado... Tudo prova de uma devoção intensa, mas pouco esclarecida. A mesma que, talvez no século XVIII, mandou pôr uns olhos de vidro na imagem e promoveu uma nova pintura, pouco cuidadosa, esbranquiçada, que cobriu a original, muito mais bela e realista.
Esta situação encontrou em 2004 o padre Alberto Jorge quando decidiu mandar restaurar o Menino. O trabalho foi entregue a uma técnica consciente que restituiu à imagem a sua dignidade antiga, fazendo a sua reintegração cromática. Regressado, foi devolvido ao altar-mor, onde hoje abençoa os seus devotos, na beleza da sua nudez original (representação da Verdade), nascida talvez no séc. XVI ou XVII.

(in O Distrito de Portalegre)

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