terça-feira, 5 de junho de 2007

UM AMIGO
E UMA EXPOSIÇÃO
Conheço João Salvador Martins desde que me lembro de ser gente. Colega de brincadeiras de um sobrinho seu, recordo uma sala em cuja parede estava um dos seus cavalos. Lembro ainda os seus passeios, por vezes solitários, pelas ruas e campos das Carreiras e, sobretudo, alguns retratos que, com singular rapidez, ia fazendo nas costas de calendários de pendurar, onde apareciam figuras típicas da nossa aldeia comum (o taberneiro e cantador Domigos Sobreira, Chico Pragana, surdo-mudo e cadeireiro, e alguns outros) e permaneciam expostos, entre garrafas e copos de vinho, numa tasca da Rua da Igreja.
Foi o primeiro pintor que conheci – e por isso, em jeito de homenagem, lhe dediquei um pequeno poema (recentemente publicado na revista Saudade, em Amarante), no qual recordei as bolandas que levaram à execução e reexecução do retrato a carvão do ti’ António Afonso do Adro, hoje na posse da família deste –, imediatamente antes de Maria Lucília Moita que, nos anos ‘70/’80, era presença constante na aldeia (falsamente chamada “presépio”).
Sem nada perguntar, observando o trabalho de João Salvador quando podia – e, também, os retábulos da igreja do Mártir São Sebastião, obra anónima do século XVII – ia criando consciência do que são a arte e a pintura: não somente representação, mas transfiguração; mais do que visão, imaginação; mais do que conteúdo, matéria plástica (cores e traços numa parcela simulada do espaço).
Trinta anos de diferença nos separavam na minha infância; era natural que os nossos contactos se limitassem a uma breve passagem da sua mão pela minha cabeça e a um olhar meu de admiração. Trinta anos nos separam ainda hoje. Ambos capricornianos de vinte e tantos de Dezembro, são agora mais frequentes as nossas conversas no café do Rossio, nas ruas das Carreiras ou noutro lado; nem sempre estamos de acordo, mas entendemo-nos como amigos – e isso basta.
Só esta amizade e gratidão que me ligam a João Salvador Martins e à sua pintura me convenceram a romper por momentos o afastamento voluntário em relação à maior parte das actividades desenvolvidas na Biblioteca Municipal de Portalegre. Desgostoso com a estranha e perigosa mistura feita nesse espaço entre cidadãos com qualidade humana, cívica, artística e/ou literária e outros sem dimensão estética e/ou ética (para não falar noutras “coisas” que por ali ocorrem ou dali partem) – fui obrigado a reconhecer que a melhor maneira de demonstrar amor pela terra em que nasci e vivi é voltar as costas a tudo quanto macula o seu bom nome de cidade e de centro de uma região.
Os quadros que pude observar na exposição de João Salvador Martins eram, na sua maioria, meus conhecidos. Tive até o privilégio de acompanhar a execução de alguns deles, nomeadamente as aguarelas carreirenses. Independentemente do motivo que apresentam (na pintura não interessa a vista ou o rosto retratado, mas a capacidade de interpretação e de transformação do pintor, conseguida através do desenho e da disposição das cores – tudo o resto está de fora, pertence às circunstâncias, não interessa ao quadro enquanto objecto artístico), confirmei o interesse que sempre me suscitaram.
Nem a descuidada montagem da exposição, nem o catálogo lamentável, nem o insensível emolduramento das obras carreirenses (propriedade da Junta de Freguesia local) conseguem diminuir a qualidade dos quadros. Trouxe no olhar, entre outras obras, os retratos muito conseguidos de Maria Tavares Transmontano e de Nuno Oliveira. Valem por si, independentemente de quem representam. Transfiguram a realidade, animando-a. Toda a boa pintura deveria ser assim…


(in O Distrito de Portalegre)

1 comentário:

Anónimo disse...

Um amigo distinto que nunca esquecerei.

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