quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009


As Pinturas Murais
da Capela do Santíssimo
na Igreja Matriz de Arronches

Patrícia Monteiro (Historiadora de Arte)
patriciamonteiro76@gmail.com

Maria João Cruz (Conservadora/Restauradora[i])
joaoscruz@hotmail.com



A Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção, em Arronches, terá sido fundada por iniciativa de D. Teotónio, prior de Santa Cruz de Coimbra, em 1236, estando a vila por essa altura na posse do mesmo Mosteiro[ii]. Os escassos dados existentes sobre a Matriz referem-se ao edifício do século XVI, integrado já no tardo-gótico alentejano. O seu interior apresenta-se dividido em três naves, embora seja notória uma procura da unificação do espaço, apontando no sentido das “igrejas-salão” quinhentistas (como a Igreja de Santa Maria de Belém e a Matriz de Freixo de Espada à Cinta).
A igreja apresenta também elementos artísticos de várias épocas. Entre eles, merece papel de relevo o programa fresquista recentemente descoberto na actual Capela do Santíssimo Sacramento. Através da consulta das Memórias Paroquiais de Arronches (datadas de 1758) podemos ver que esta capela tinha então a rara evocação do Rio Jordão: “(…) e tambem desta mesma parte [Epístola] tem o Altar do Jordam, e neste collocadas as Imagens de S. Bartholomeu e de Santa Izabel (…)”[iii]. Desconhece-se o paradeiro destas imagens, sendo provável que ainda se encontrem no interior do templo. Alterações relacionadas com cânones litúrgicos ditaram transformações iconográficas na igreja, razão pela qual não é possível afirmar que fosse essa a evocação primitiva da capela.
No chão da capela encontra-se a campa rasa da família Viles (ou Velez) da Silveira, com o respectivo brasão de armas e a inscrição: Sepultura de Antonio Viles da Silveira he de sua molher Giumar Ferreira instituidores do morguado da Silveira desta capela a qual mandou faser Guaspar Viles da Silveira seu sobrinho primeiro posuidor e jas aqui com sua mulher Izabel Misurada de Siqueira de seus herdeiros. A legenda indica, assim, que Gaspar Viles da Silveira foi o responsável pela construção desta capela, patronato que fica reforçado através da repetição do seu brasão (uma torre quadrada com quatro janelas, uma porta e um paquife no topo) no caixotão central do tecto, ainda com vestígios de policromia (tons verdes, azuis e ocres) (Foto 1). Esta legenda levanta algumas questões, uma vez que entra em contradição com a informação avançada pelo Livro Genealógico das Famílias desta Cidade de Portalegre. Nesta obra, o mesmo Gaspar de Velez da Silveira é identificado como sendo pai (e não sobrinho) de António Velez da Silveira que morreu sem deixar descendência. Deste modo seu pai herdou o Morgado da Silveira, instituído por António Velez e por sua mulher[iv]. A correcta definição da linha genealógica da família Velez da Silveira, bem como a identificação destes personagens é fundamental para determinar a datação da capela, porém não se conhecem quer as datas de nascimento ou óbito de qualquer dos elementos atrás referidos. Parece, no entanto, seguro afirmar que a erecção da capela situar-se-á em finais do século XVI, uma vez que Leonor Rodrigues, mãe de Gaspar Viles da Silveira tinha já enviuvado em 1580 e que seu filho seguira então a linha legítima de sucessão na casa da família[v].

A capela apresenta uma abóbada de caixotões quadrangulares (cinco fiadas verticais, atravessadas por outras cinco horizontais), um tipo de cobertura que se popularizou entre muitas igrejas do Norte Alentejo (Sé de Portalegre; Capela do Calvário, em Nisa; Igreja de Nª Senhora da Conceição, em Monforte; capela-mor da Matriz do Crato; Capela de S. João Baptista, em Amieira do Tejo, etc). As coberturas em caixotões derivaram de construções da Antiguidade Clássica e foram utilizadas em território nacional (enquanto símbolos de erudição) em construções patrocinadas sobretudo por membros da família real que integravam a elite cultural da época. Um exemplo emblemático é a capela-mor da Igreja do Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, encomendada pela Rainha Dona Catarina em 1571-1572, que serviu de modelo para inúmeras outras construções que se foram realizando pelo País. Em grande parte dos casos, os caixotões são reservados apenas à cobertura da capela-mor, espaço de maior religiosidade e significado simbólico, sugerindo a ideia de “um túnel” de entrada num espaço sagrado[vi].
No caso dos caixotões da Capela do Santíssimo, recentes trabalhos de conservação puseram a descoberto um programa pictórico de invulgar originalidade a nível nacional (Foto 2). Num primeiro registo, contornando toda a capela, encontram-se dez santos (seis dos quais são apóstolos), desenhados a meio corpo, com grande rigor e executados apenas em grisalhe com tons de cinza e negro, criando uma ilusão de baixo-relevo. A sucessão de imagens de significado predominantemente hagiográfico em detrimento de um programa narrativo, poderá encontrar a sua razão de ser na importância que este tipo de temática veio a obter após as reformas do concílio tridentino, onde as vidas dos santos e mártires foram utilizadas pela Igreja Católica como modelos a seguir pelos crentes, atribuindo-lhes assim amplo significado catequético (Foto 3).
A grande qualidade deste conjunto pictórico e a sua contextualização deverão ser feitas à luz das influências artísticas e de mão-de-obra proveniente dos principais centros de produção da época, nomeadamente Évora, Portalegre (a cujo bispado Arronches pertencia) ou, mais próxima, a cidade de Elvas. Sabemos que em 1610 o pintor José de Escobar (morador em Évora) encontrava-se em Elvas a realizar a pintura a fresco da capela-mor do Convento de Santa Clara, obra hoje desaparecida[vii]. É pois inquestionável que existisse um mercado activo para este tipo de obras o que justificaria a presença de um pintor vindo de uma região mais distante, em torno do qual se formariam novos artistas que trabalhavam depois para regiões vizinhas.
Cada uma das figuras do tecto da Capela do Santíssimo é retratada com um desenho bastante pormenorizado e rigoroso quer ao nível do tratamento dos rostos, cabelo e barba, como dos panejamentos. A presença de uma filactera angulosa exibindo em caracteres góticos o nome de cada santo, bem como a própria grafia (como no caso de S. Pedro - S. Petre) sugere uma possível afinidade destas representações com gravuras flamengas ou alemãs (Foto 4). Para além disso, há que destacar o cuidado com que são trabalhados os volumes e as zonas de claro/escuro, recorrendo a ténues gradações de cinza, denunciando a presença de mão-de-obra com alguma experiência neste tipo de composição e de técnica. Qualquer detalhe menos conseguido fica diluído no conjunto pictórico, de grande impacto visual, onde se destaca acima de tudo a grande qualidade do desenho.
Cada imagem faz-se acompanhar ainda pelo seu respectivo atributo iconográfico, sendo assim identificáveis S. Marcos, S. Tiago Menor, S. Paulo, S. Pedro, S. João Evangelista (do lado esquerdo), e S. Mateus, S. Bartolomeu, Santo André, S. Simão e S. Lucas (do lado direito).
Em cada ângulo da capela encontra-se um evangelista sentado, acompanhado por um livro aberto e um tinteiro (alusão à redacção de cada um dos seus Evangelhos), assim como os quatro elementos do Tetramorfo (o anjo, a águia, a vaca e o leão). Nas filacteras, para além da respectiva identificação, encontramos ainda referência a uma passagem bíblica narrada simultaneamente nos quatro Evangelhos: o episódio da prisão de Cristo (Foto 5). Este momento está integrado no tema, mais vasto, da Paixão e Ressurreição de Cristo. O significado iconográfico desta passagem bíblica poderá estar relacionado com a evocação original da capela, uma vez que enquanto a prisão de Cristo é o momento da sua traição, por outro lado o baptismo no Rio Jordão assinala Cristo enquanto o escolhido por Deus, dando início à Paixão.
Os caixotões das fiadas seguintes exibem, sobretudo, motivos vegetalistas ocupando todo o espaço de cada caixotão, num desenho largo e mais livre, de grande impacto visual, sem que pareça existir simetria entre as representações (Foto 6). Para além disso, em alguns caixotões, encontram-se pequenas aves e também o símbolo do pelicano picando o peito e alimentando os filhos com o seu sangue, no meio de uma coroa de espinhos, alusão ao sacrifício de Cristo pelos fiéis (Foto 7). Neste caso, são visíveis vestígios de cromatismo destacando-se do fundo onde predominam as gradações de cinzento. Pontualmente, nas nervuras que formam os caixotões, também se encontram pequenas flores vermelhas.
Este conjunto mural possivelmente integrar-se-ia num programa artístico muito mais vasto que ocuparia as paredes da capela, porém as múltiplas modificações que foram ocorrendo na ornamentação litúrgica do espaço, as camadas de cal e outras intervenções foram transformando, ocultando os registos decorativos de outros tempos e diversificando os estilos.


[...]



[i] Trabalho executado para a Regra de Ouro, Sociedade de Restauradores, Lda., Tomar. TÉCNICO:
Tiago Cutileiro
[ii] KEIL, Luís, Inventário Artístico de Portugal, Distrito de Portalegre, 1943, p. 11.
[iii] Dicionário Geographico de Portugal, Arronches, vol. 5, memória nº18, p. 665.
[iv] BRITO, Manuel da Costa Juzarte de, Livro Genealógico das Famílias desta Cidade de Portalegre, 2002, p. 862.
[v] Idem, Ibidem.
[vi] KUBLER, George, A Arquitectura Portuguesa Chã, Entre as Especiarias e os Diamantes (1521-1706), 1988, p. 58-78.
[vii] Arquivo Distrital de Portalegre, Cartórios Notariais de Elvas, Contrato entre o Balio Rui de Brito e o pintor José de Escovar para a pintura a fresco da capela-mor do Convento de Santa Clara de Elvas e de algumas divisões na sua casa, 10 de Julho de 1610 Liv.º 27, fls. 124v.-126v. (Inédito)

Primeira parte do artigo:
CRUZ, Maria João e MONTEIRO, Patrícia “As pinturas murais da Capela do Santíssimo na Igreja Matriz de Arronches” in Património-Estudos, n.º10, Lisboa, IPPAR, 2007, pp. 213-219.

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