PORTALEGRE:
CLASSIFICAR
PATRIMÓNIO,
APAGAR
PATRIMÓNIO
Segundo noticiou o
jornal “Alto Alentejo”, na sua edição de 15/7/2020, os vereadores da Câmara
Municipal de Portalegre aprovaram por unanimidade o início do processo de
classificação de cerca de quatro dezenas de bens culturais existentes no concelho.
Fizeram bem. É uma decisão honrada. Tal iniciativa só pode merecer o aplauso de
quem reconhece valor inalienável à herança histórica, arquitectónica e
artística dessa parte do Alto Alentejo.
Propor uma
classificação não é, contudo, classificar. É apenas dar início a um longo
processo, decidido fora dos gabinetes municipais. Um rol tão grande, diz-se,
pode mesmo criar obstáculos intransponíveis à classificação dos bens em causa.
Bem sabemos o quanto os organismos que tutelam o Património Cultural português carecem
gravemente de meios humanos e financeiros para acudir a todo o serviço que lhes
cai sobre a secretária. Há quem lembre que propor a salvaguarda de tantos
monumentos de uma só vez costuma ser estratégia usada por autarcas que desejam
mostrar serviço perante os seus eleitores quando, na realidade, não têm
qualquer desejo de classificar seja o que for (sabendo bem demais que a
avalanche assim provocad será razão bastante para que tudo seja arquivado no
fundo das gavetas). Isto afirma quem há mais de 20 anos trata desses assuntos…
e tem sido responsável pela organização e tramitação de processos de
classificação ao mais alto nível. Quero crer, todavia, que a intenção de quem fez
tal proposta conjunta terá sido séria. O futuro confirmará ou não a minha
percepção. Para já, merecem reconhecimento aqueles que a votaram
favoravelmente, pondo a Cultura acima de outros interesses menos dignos.
Não me pronuncio sobre
os cerca de 40 bens culturais a classificar. Não há nenhum que não mereça a distinção.
Ainda assim, sublinho a minha satisfação por ver entre eles vários edifícios de
boa arquitectura do século XX, cuja dignidade e valor não são menores por não
terem sido elevados em séculos anteriores, normalmente mais prestigiados. Não
deixo todavia de estranhar que alguns edifícios sejam propostos para
classificação depois de terem sido total ou parcialmente demolidos e, de
seguida, abastardados ou substituídos por réplicas sem qualquer valor. Não me pronuncio
sobre o rol proposto pelos gestores da Câmara Municipal de Portalegre e
aprovado pela unanimidade dos vereadores. Espero apenas que a classificação
seja concluída com sucesso e tenha como consequência a valorização, recuperação
e/ou revitalização desse património concelhio, doravante – se assim se
concretizar – mais protegido contra intervenções e vizinhanças que deveriam
envergonhar toda a gente, a começar por quem as aprovou e/ou promoveu.
Não obstante,
parece-me justo manifestar a minha estranheza – e até a minha indignação – por tudo
quanto foi apagado da proposta municipal. Refere o jornal “Alto Alentejo” que a
lista incluiu imóveis arrolados no PDM de 2011, juntando-lhe propostas diversas
que recebeu (não se sabe de quem e em que circunstâncias). Pretende proteger
“casas brasonadas, conventos, igrejas, um conjunto habitacional popular e edifícios
modernistas e contemporâneos, de elevado valor arquitectónico”. Perante essa
justificação (aceitável, mas parcial), estranha-se a quase inteira exclusão do rico
património arqueológico concelhio, que Portalegre teima em não cartografar nem
inventariar, contribuindo para a sua destruição. Urge ainda perguntar se a
parte norte do concelho de Portalegre ainda faz parte desse município ou, se
fazendo parte dele, é conhecida por quem governa, administra e gere a edilidade
há pelo menos uma década.
Poderia referir a ausência nessa
proposta de classificação de qualquer bem das freguesias de Alagoa e de São
Julião ou, ainda, o estranho apagamento de vários bens valiosíssimos da
freguesia da Ribeira de Nisa, como as ruínas medievais da Provença, a igreja de
Nossa Senhora da Esperança (antigo Convento de Santo António) ou a Quinta de
São Bento. É como se não tivessem, entre as suas fronteiras, património
relevante… Mas têm. Na Ribeira de Nisa, propõe-se a classificação de um
“convento de S. Francisco”, mas como tal edifício não existe nem nunca existiu
na freguesia, é o mesmo que nada propor…
Mais grave se me afigura todavia o
tratamento discriminatório dado à freguesia de Carreiras, que já no inventário
do património distrital, elaborado em 1943 por Luiz Keil, foi completamente
ignorada. Naquele tempo, não havia estradas para lá chegar. Hoje essas estradas
existem, o seu património está divulgado, mas parece que os gestores da
edilidade portalegrense querem continuar uma lamentável tradição…
Para
a Câmara Municipal de Portalegre, pelos vistos, não tem qualquer valor o
património carreirense. Nada valem a anta da herdade de João Martins, o povoado
neolítico do Veloso e as ruínas da Alta Idade Média existentes nas suas
proximidades, as estruturas megalíticas do Fraguil, as ruínas romanas ou
medievais do Monte da Gente, a medieval Torre Alta ou Torre da Ribeira (ligada
à família de D. Nuno Álvares Pereira), a calçada medieval que ligava Portalegre
a Castelo de Vide e outros troços viários da mesma época, a quinhentista Torre
Caldeira (mandada construir pela família dos alcaides-mores de Portalegre), a
igreja de São Sebastião (edificada na primeira metade do século XVI, com capela
dessa época, retábulos maneiristas já estudados a nível nacional, fachada
barroca e pinturas murais tratadas em tese de doutoramento), um cruzeiro único
de cantaria e azulejos (do século XVIII), pórticos de cantaria do século XVI, casas
com varandas do mesmo século ou da centúria seguinte, a sua Torre do Relógio, etc.
Nada disto teve valor para os autores do PDM de 2011, que ignoraram esse
património, pondo-o em risco e contribuindo para a descaracterização de uma
aldeia a que, com ironia, chamam “presépio”. A mesma opinião parecem ter agora,
nove anos depois, aqueles que propuseram uma lista de património a classificar,
ignorando esses e outros bem valiosos – e voltando a pôr em causa a sua
sobrevivência.
Há
muitos anos que se fala no abandono dessa freguesia histórica do concelho de
Portalegre, abandono que tem revestido várias manifestações indignas (a mais
grave das quais foi a sua “extinção”, baseada em argumentos fraudulentos). É,
assim, justo perguntar que destino teria essa parcela do território
portalegrense se estivesse incluída num dos municípios vizinhos, Castelo de
Vide ou Marvão. Na certa, Carreiras veria o seu património valorizado de outro
modo – e não esquecido por pessoas que, com boa ou má intenção, com consciência
ou sem ela, parecem querer apagar do concelho uma das suas mais belas e
valiosas partes.
Felizmente,
a Lei permite que os requerimentos de classificação partam de simples cidadãos.
A seu tempo, não deixarão de agir. Pode ser que essas iniciativas tenham mais sucesso
do que a proposta de classificação da igreja carreirense feita há uns anos por
técnica-superior do ex-IPPAR e que gente ardilosa enterrou sabe Deus onde…
(artigo publicado no jornal "Alto Alentejo", de 22/7/2020)