IGREJA DE SANTA
MARIA DA DEVESA
Castelo de Vide
Ruy Ventura
(texto e foto)
(texto e foto)
Com
provável origem moçárabe, a primeira igreja de Castelo de Vide a assumir a função
de matriz foi a do Rei Salvador do Mundo, situada nos arredores da vila. Assim
o diz uma tradição muito antiga, a qual afirma que a segunda foi a de Santiago
Maior, talvez resultante da adaptação ao culto cristão de uma mesquita. Anterior
a Santa Maria da Devesa terá sido ainda outra igreja medieval, existente no
castelo e antepassada da actual ermida de Nossa Senhora da Alegria (a padroeira
do burgo).
O
templo imponente que hoje se eleva – um dos mais amplos de todo o Alentejo – resulta
da reconstrução iniciada em 1789 e concluída já na segunda metade do século
XIX, ocorrendo a abertura solene a 28 de Setembro de 1873. A primitiva ermida
dedicada à Virgem, edificada na devesa ou rossio extramuros da vila, terá
nascido na segunda metade do século XIII. Em 1311, aí instituíram Lourenço
Pires e Domingas Joanes uma capela, à qual deixaram os seus bens, entregues à
administração dos “confrades da albergaria de Santa Maria”. Entre essa data e
1321 terá sido elevada ao estatuto de paróquia, juntando-se a outras quatro
(Santiago, Salvador, São Pedro e São Lourenço).
Na
sequência dessa promoção, o pequeno edifício terá recebido uma ampliação gótica.
Se a igreja isolada que podemos ver num desenho de Duarte d’ Armas datado de
1509-1510 é, de facto, a matriz de Castelo de Vide, então na primeira década do
XVI já teria essas características, exibindo uma estrutura típica do gótico
depurado, adoptado por todo o país, nomeadamente nas igrejas paroquiais. Se as
três naves, com a central mais elevada, evidenciam uma construção medieval, a
capela-mor quadrangular, com contrafortes a meio dos panos murários, ladeada
por uma torre sineira, denuncia uma intervenção posterior, datável já do
período manuelino, talvez ainda de finais do século XV. Nada de estranhar,
sendo Santa Maria a cabeça de uma comenda da Ordem de Cristo.
Um
desenho inédito anónimo, de execução não posterior aos primeiros anos do século
XVIII, nem anterior a 1680, dá-nos uma imagem mais concreta da matriz. Nessa
panorâmica de Castello da Vide, Santa
Maria da Devesa é representada com destaque volumétrico no meio de um denso
casario, tendo a rodeá-la, no entanto, um adro espaçoso. A sua aparência não era
já aquela que Duarte d’Armas registou. A largura da fachada, com três janelões,
uma janela mais pequena e um pórtico grandioso (que parece de volta perfeita),
denuncia uma estrutura interna com três naves, coberta, todavia, por um telhado
com duas águas. A sul da capela-mor, elevava-se uma sineira de grandes
dimensões, edificada diagonalmente em relação à Casa da Câmara. Essa torre
ocuparia, assim, um lugar hoje aberto, poucos metros a norte do sítio onde se
ergue o pelourinho.
Embora
com dimensões menores do que o actual edifício, a primitiva matriz não se
instalaria num espaço muito distinto daquele que agora ocupa a sua sucessora. Em
1758, o P.e João Aires Baptista fala-nos já de uma igreja integrada
no Padroado Real, mas “aruinada, não pello terramoto do anno de 1755
mas por muito velha”. A paróquia estava então instalada na Colegiada do
Espírito Santo, pois em 1749 o bispo de Portalegre, D. Fr. João de Azevedo,
havia dado ordem para a sua demolição e reedificação. Pelos apontamentos desse pároco
ficamos a saber que as suas três naves possuíam nove altares, aí estando
instaladas seis confrarias.
O edifício desaparecido foi recebendo várias
campanhas de obras. Regista-se, por exemplo, a intenção de substituir o
retábulo-mor em pintura mural, considerado um “escandalo”. Para executá-lo,
chegou a ser contratado em 1610 o marceneiro lisboeta Manuel Ribeiro, mas tal
obra nunca chegou a fazer-se. Só em 1662 o pintor portalegrense Manuel de Faria
celebraria escritura para a execução dessa peça retabular. Em 1678-1679, o
pintor José de Carvalho, também de Portalegre, dourou o altar de Nossa Senhora
do Rosário, onde se incluía uma Árvore de
Jessé. Pela mesma data, o elvense Afonso Vaz foi encarregue de dourar o
retábulo do Santíssimo Sacramento, tendo ainda a obrigação de pintar a abóbada,
os frisos e o frontispício da capela-mor, bem com as suas grades. Não obstante
estas intervenções artísticas, entre 1682 e 1684 Santa Maria da Devesa sofreu uma
intervenção importante, ao ponto de o culto ter de passar para outra igreja.
Talvez date dessa época a substituição do portal, modificado cerca de 1748, o
qual ainda hoje subsiste como entrada principal do novo imóvel, ao qual foi
adaptado, apesar das suas dimensões algo desajustadas em tão alta e larga
fachada.
O edifício actual demorou 84 anos a concluir,
se estabelecermos como data limite o ano da sua inauguração, 1873. A construção
terminou em 1822, mas a ornamentação do interior demoraria mais algumas
décadas. O projecto quase catedralício de Santa Maria da Devesa, ainda hoje
anónimo, mostra uma gramática barroca que, a pouco e pouco, se foi adaptando
nos pormenores ornamentais a novas estéticas, sem deixar uma atitude
simplificadora, habitual nas traduções regionais de arquitecturas eruditas. Podemos
assim encontrar elementos do Rococó a par de evidências neoclássicas, ombreando
com outras que já denotam um certo romantismo, aquele que recuperou sem
preconceitos apontamentos de estilos anteriores ao século XVIII. A organização
do amplo espaço interior – em cruz latina, com capela-mor larga e pouco funda,
transepto, cruzeiro coberto por enorme cúpula, nave com vários tramos divididos
por pilastras, entre as quais existem arcos encimados por tribunas, e coro a
toda a largura, sustentado por uma abóbada muito abatida – lembra alguns
edifícios lisboetas das eras pombalina e pós-pombalina, v.g., a basílica do Sagrado Coração de Jesus, à Estrela, ou a
igreja de São Domingos, traçada por Manuel Caetano de Sousa.
Povo e elites, paróquia, confrarias, município
e até o Estado suportaram os enormes custos da edificação da hodierna igreja. Construção
levantada de raiz, não deixou ela de aproveitar
subsistências da antiga matriz. Tal reciclagem
correspondeu não só à necessidade racionalizar os recursos disponíveis, mas
também a uma atitude eclética, vigente nos tempos em que os trabalhos se
iniciaram e desenvolveram, que aceitou e promoveu a inclusão em edifícios modernos
de elementos mais antigos.
Na actual estrutura vislumbram-se, pois, várias
peças arquitectónicas e ornamentais mais antigas, como um arco maneirista na
entrada do baptistério ou, talvez, uma escadaria manuelina numa das torres sineiras. O retábulo-mor, com
ornamentação neomaneirista, é das peças mais recentes, tendo sido executado pouco
depois de 1867, a partir de um risco do arquitecto lisboeta Manuel Afonso
Rodrigues Pita. No transepto e na nave encontramos, contudo, obras anteriores,
destacando-se o retábulo de Nossa Senhora do Rosário (1771) e o de São Pedro
(hoje de São José, saído da mesma mão), bem como o do Senhor dos Passos ou das
Almas (talvez de inícios do século XIX, mas modificado em 1885). O retábulo do
Santíssimo Sacramento, em mármores, data de 1829, não devendo ser muito
posterior aquele que se eleva no lado oposto, dedicado a Nossa Senhora do Carmo.
Bastante mais recente é o de Nossa Senhora de Fátima, o qual, numa estética
revivalista, imitou em 1954 o que lhe está fronteiro. As paredes laterais da
capela-mor acolhem, por seu turno, um conjunto de pinturas figurativas,
consequência das grandes obras promovidas na igreja entre 1945 e 1950. Tirando
o Regresso do Filho Pródigo e o Repouso na Fuga para o Egipto, saídos do
pincel anacrónico de Luísa Salema Cordeiro e Alice Gordo Barata,
respectivamente, todas as restantes foram executadas entre 1952 e 1953 por
Adolfo Bugalho, mostrando uma estética menos apegada ao passado. São
especialmente interessantes aquelas que ilustram o versículo 2 do Salmo 42 (41) e o versículo 17 do
capítulo 19 do Evangelho segundo São
Mateus.
Esta igreja acolhe uma numerosa colecção de
obras de arte sagrada, parte delas integradas na reserva visitável denominada Museu de Arte Sacra Cón.º Albano Vaz Pinto.
Com peças que vão dos finais da Idade Média ao século XX, aí se salientam várias
esculturas pétreas: Santa Maria da Devesa
(século XV, acaso da órbita do escultor coimbrão João Afonso); uma Trindade quatrocentista; um Santiago Peregrino da mesma época; um Santo não identificado, do mesmo autor
que esculpiu um Santo André do Museu
Nacional de Arte Antiga; um mutilado São
Lourenço (talvez de João de Ruão); um decapitado São Pedro e um São Roque,
ambos já de Quinhentos. Entre as obras lígneas, merecem referência a barroca Sacra Parentela, uma Nossa Senhora do Loreto (saída no
primeiro quartel do século XVIII das mãos dos calipolenses Francisco Freire e
Manuel de Oliveira), além da série de Santos
da Ordem Terceira de São Francisco, cujas cabeças denotam a intervenção de
muito boa oficina lisboeta da segunda metade de Setecentos.
Bibliografia fundamental:
DIAMANTINO
SANCHES TRINDADE, Castelo de Vide –
Subsídios para o Estudo da Arqueologia Medieval, Lisboa, Assembleia
Distrital de Portalegre, 1979; DIAMANTINO SANCHES TRINDADE, Castelo de Vide – Arquitectura Religiosa, I,
2.ª ed., Lisboa, Câmara Municipal de Castelo de Vide, 1989; PEDRO CID, As Fortificações Medievais de Castelo de
Vide, Lisboa, Instituto Português do Património Arquitectónico e
Arqueológico, [2005]; ROSÁRIO SALEMA DE CARVALHO, Igreja de Santa Maria da Devesa, Matriz de Castelo de Vide, [Castelo
de Vide], Câmara Municipal de Castelo de Vide, 2006; CÉSAR VIDEIRA, Memoria Historica de Muito Notavel Villa de
Castello de Vide, 3.ª ed., Lisboa, Edições Colibri-Universidade de Évora,
Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades, 2008; PATRÍCIA
ALEXANDRA RODRIGUES MONTEIRO, A Pintura
Mural no Norte Alentejo (Séculos XVI a XVIII: Núcleos Temáticos da Serra de S.
Mamede, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 2012 (dissertação de Doutoramento
em História da Arte apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa); RUY VENTURA, A Vide e o seu
Castelo – Notas sobre a Toponímia, a História e a Heráldica de Castelo de Vide,
Évora-Castelo de Vide, Editora Licorne – Grupo de Amigos de Castelo de Vide,
[2016].