segunda-feira, 20 de abril de 2020

IGREJA DE SANTA MARIA DA DEVESA
Castelo de Vide

Ruy Ventura
(texto e foto)


Com provável origem moçárabe, a primeira igreja de Castelo de Vide a assumir a função de matriz foi a do Rei Salvador do Mundo, situada nos arredores da vila. Assim o diz uma tradição muito antiga, a qual afirma que a segunda foi a de Santiago Maior, talvez resultante da adaptação ao culto cristão de uma mesquita. Anterior a Santa Maria da Devesa terá sido ainda outra igreja medieval, existente no castelo e antepassada da actual ermida de Nossa Senhora da Alegria (a padroeira do burgo).
O templo imponente que hoje se eleva – um dos mais amplos de todo o Alentejo – resulta da reconstrução iniciada em 1789 e concluída já na segunda metade do século XIX, ocorrendo a abertura solene a 28 de Setembro de 1873. A primitiva ermida dedicada à Virgem, edificada na devesa ou rossio extramuros da vila, terá nascido na segunda metade do século XIII. Em 1311, aí instituíram Lourenço Pires e Domingas Joanes uma capela, à qual deixaram os seus bens, entregues à administração dos “confrades da albergaria de Santa Maria”. Entre essa data e 1321 terá sido elevada ao estatuto de paróquia, juntando-se a outras quatro (Santiago, Salvador, São Pedro e São Lourenço).
Na sequência dessa promoção, o pequeno edifício terá recebido uma ampliação gótica. Se a igreja isolada que podemos ver num desenho de Duarte d’ Armas datado de 1509-1510 é, de facto, a matriz de Castelo de Vide, então na primeira década do XVI já teria essas características, exibindo uma estrutura típica do gótico depurado, adoptado por todo o país, nomeadamente nas igrejas paroquiais. Se as três naves, com a central mais elevada, evidenciam uma construção medieval, a capela-mor quadrangular, com contrafortes a meio dos panos murários, ladeada por uma torre sineira, denuncia uma intervenção posterior, datável já do período manuelino, talvez ainda de finais do século XV. Nada de estranhar, sendo Santa Maria a cabeça de uma comenda da Ordem de Cristo.
Um desenho inédito anónimo, de execução não posterior aos primeiros anos do século XVIII, nem anterior a 1680, dá-nos uma imagem mais concreta da matriz. Nessa panorâmica de Castello da Vide, Santa Maria da Devesa é representada com destaque volumétrico no meio de um denso casario, tendo a rodeá-la, no entanto, um adro espaçoso. A sua aparência não era já aquela que Duarte d’Armas registou. A largura da fachada, com três janelões, uma janela mais pequena e um pórtico grandioso (que parece de volta perfeita), denuncia uma estrutura interna com três naves, coberta, todavia, por um telhado com duas águas. A sul da capela-mor, elevava-se uma sineira de grandes dimensões, edificada diagonalmente em relação à Casa da Câmara. Essa torre ocuparia, assim, um lugar hoje aberto, poucos metros a norte do sítio onde se ergue o pelourinho.
Embora com dimensões menores do que o actual edifício, a primitiva matriz não se instalaria num espaço muito distinto daquele que agora ocupa a sua sucessora. Em 1758, o P.e João Aires Baptista fala-nos já de uma igreja integrada no Padroado Real, mas “aruinada, não pello terramoto do anno de 1755 mas por muito velha”. A paróquia estava então instalada na Colegiada do Espírito Santo, pois em 1749 o bispo de Portalegre, D. Fr. João de Azevedo, havia dado ordem para a sua demolição e reedificação. Pelos apontamentos desse pároco ficamos a saber que as suas três naves possuíam nove altares, aí estando instaladas seis confrarias.
O edifício desaparecido foi recebendo várias campanhas de obras. Regista-se, por exemplo, a intenção de substituir o retábulo-mor em pintura mural, considerado um “escandalo”. Para executá-lo, chegou a ser contratado em 1610 o marceneiro lisboeta Manuel Ribeiro, mas tal obra nunca chegou a fazer-se. Só em 1662 o pintor portalegrense Manuel de Faria celebraria escritura para a execução dessa peça retabular. Em 1678-1679, o pintor José de Carvalho, também de Portalegre, dourou o altar de Nossa Senhora do Rosário, onde se incluía uma Árvore de Jessé. Pela mesma data, o elvense Afonso Vaz foi encarregue de dourar o retábulo do Santíssimo Sacramento, tendo ainda a obrigação de pintar a abóbada, os frisos e o frontispício da capela-mor, bem com as suas grades. Não obstante estas intervenções artísticas, entre 1682 e 1684 Santa Maria da Devesa sofreu uma intervenção importante, ao ponto de o culto ter de passar para outra igreja. Talvez date dessa época a substituição do portal, modificado cerca de 1748, o qual ainda hoje subsiste como entrada principal do novo imóvel, ao qual foi adaptado, apesar das suas dimensões algo desajustadas em tão alta e larga fachada.
O edifício actual demorou 84 anos a concluir, se estabelecermos como data limite o ano da sua inauguração, 1873. A construção terminou em 1822, mas a ornamentação do interior demoraria mais algumas décadas. O projecto quase catedralício de Santa Maria da Devesa, ainda hoje anónimo, mostra uma gramática barroca que, a pouco e pouco, se foi adaptando nos pormenores ornamentais a novas estéticas, sem deixar uma atitude simplificadora, habitual nas traduções regionais de arquitecturas eruditas. Podemos assim encontrar elementos do Rococó a par de evidências neoclássicas, ombreando com outras que já denotam um certo romantismo, aquele que recuperou sem preconceitos apontamentos de estilos anteriores ao século XVIII. A organização do amplo espaço interior – em cruz latina, com capela-mor larga e pouco funda, transepto, cruzeiro coberto por enorme cúpula, nave com vários tramos divididos por pilastras, entre as quais existem arcos encimados por tribunas, e coro a toda a largura, sustentado por uma abóbada muito abatida – lembra alguns edifícios lisboetas das eras pombalina e pós-pombalina, v.g., a basílica do Sagrado Coração de Jesus, à Estrela, ou a igreja de São Domingos, traçada por Manuel Caetano de Sousa.  
Povo e elites, paróquia, confrarias, município e até o Estado suportaram os enormes custos da edificação da hodierna igreja. Construção levantada de raiz, não deixou ela de aproveitar subsistências da antiga matriz. Tal reciclagem correspondeu não só à necessidade racionalizar os recursos disponíveis, mas também a uma atitude eclética, vigente nos tempos em que os trabalhos se iniciaram e desenvolveram, que aceitou e promoveu a inclusão em edifícios modernos  de elementos mais antigos.
Na actual estrutura vislumbram-se, pois, várias peças arquitectónicas e ornamentais mais antigas, como um arco maneirista na entrada do baptistério ou, talvez, uma escadaria manuelina numa das torres sineiras. O retábulo-mor, com ornamentação neomaneirista, é das peças mais recentes, tendo sido executado pouco depois de 1867, a partir de um risco do arquitecto lisboeta Manuel Afonso Rodrigues Pita. No transepto e na nave encontramos, contudo, obras anteriores, destacando-se o retábulo de Nossa Senhora do Rosário (1771) e o de São Pedro (hoje de São José, saído da mesma mão), bem como o do Senhor dos Passos ou das Almas (talvez de inícios do século XIX, mas modificado em 1885). O retábulo do Santíssimo Sacramento, em mármores, data de 1829, não devendo ser muito posterior aquele que se eleva no lado oposto, dedicado a Nossa Senhora do Carmo. Bastante mais recente é o de Nossa Senhora de Fátima, o qual, numa estética revivalista, imitou em 1954 o que lhe está fronteiro. As paredes laterais da capela-mor acolhem, por seu turno, um conjunto de pinturas figurativas, consequência das grandes obras promovidas na igreja entre 1945 e 1950. Tirando o Regresso do Filho Pródigo e o Repouso na Fuga para o Egipto, saídos do pincel anacrónico de Luísa Salema Cordeiro e Alice Gordo Barata, respectivamente, todas as restantes foram executadas entre 1952 e 1953 por Adolfo Bugalho, mostrando uma estética menos apegada ao passado. São especialmente interessantes aquelas que ilustram o versículo 2 do Salmo 42 (41) e o versículo 17 do capítulo 19 do Evangelho segundo São Mateus.
Esta igreja acolhe uma numerosa colecção de obras de arte sagrada, parte delas integradas na reserva visitável denominada Museu de Arte Sacra Cón.º Albano Vaz Pinto. Com peças que vão dos finais da Idade Média ao século XX, aí se salientam várias esculturas pétreas: Santa Maria da Devesa (século XV, acaso da órbita do escultor coimbrão João Afonso); uma Trindade quatrocentista; um Santiago Peregrino da mesma época; um Santo não identificado, do mesmo autor que esculpiu um Santo André do Museu Nacional de Arte Antiga; um mutilado São Lourenço (talvez de João de Ruão); um decapitado São Pedro e um São Roque, ambos já de Quinhentos. Entre as obras lígneas, merecem referência a barroca Sacra Parentela, uma Nossa Senhora do Loreto (saída no primeiro quartel do século XVIII das mãos dos calipolenses Francisco Freire e Manuel de Oliveira), além da série de Santos da Ordem Terceira de São Francisco, cujas cabeças denotam a intervenção de muito boa oficina lisboeta da segunda metade de Setecentos.
           


Bibliografia fundamental:
DIAMANTINO SANCHES TRINDADE, Castelo de Vide – Subsídios para o Estudo da Arqueologia Medieval, Lisboa, Assembleia Distrital de Portalegre, 1979; DIAMANTINO SANCHES TRINDADE, Castelo de Vide – Arquitectura Religiosa, I, 2.ª ed., Lisboa, Câmara Municipal de Castelo de Vide, 1989; PEDRO CID, As Fortificações Medievais de Castelo de Vide, Lisboa, Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico, [2005]; ROSÁRIO SALEMA DE CARVALHO, Igreja de Santa Maria da Devesa, Matriz de Castelo de Vide, [Castelo de Vide], Câmara Municipal de Castelo de Vide, 2006; CÉSAR VIDEIRA, Memoria Historica de Muito Notavel Villa de Castello de Vide, 3.ª ed., Lisboa, Edições Colibri-Universidade de Évora, Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades, 2008; PATRÍCIA ALEXANDRA RODRIGUES MONTEIRO, A Pintura Mural no Norte Alentejo (Séculos XVI a XVIII: Núcleos Temáticos da Serra de S. Mamede, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 2012 (dissertação de Doutoramento em História da Arte apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa); RUY VENTURA, A Vide e o seu Castelo – Notas sobre a Toponímia, a História e a Heráldica de Castelo de Vide, Évora-Castelo de Vide, Editora Licorne – Grupo de Amigos de Castelo de Vide, [2016].


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