… E A MEMÓRIA DA CIDADE QUE SE LIXE
Lê-se
na página da sucursal portalegrense do Partido Socialista que, em Assembleia
Municipal, fez aprovar – apenas com a abstenção do PSD – a atribuição do nome
de Mário Soares à “popularmente conhecida rotunda
do navio”. Parece que esta decisão já mereceu a concordância da comissão
municipal de toponímia. Tanto quanto vim a saber, a sucursal concelhia do
Partido Comunista Português, para não ficar atrás e cobrando, quiçá, o voto
favorável dos seus eleitos, propôs ou vai propor que outra rotunda ou avenida
ou rua lagóia venha a ter o nome de Álvaro Cunhal. (Se tal se concretizar, o
que não duvido, teremos uma verdadeira geringonça portalegrense – só faltando o
beco Miguel Portas ou João Semedo ou Francisco Louçã ou Catarina Martins ou Fernando
Rosas para a trempe ficar completa...)
Ainda
correu pela cidade e arredores que a ideia inicial dos comunistas era rasurar a
designação “Avenida do Bonfim”, nascida do santuário homónimo onde tem início,
tão querido das gentes da cidade onde nasci. Mas parece que a coisa ficou pelo
caminho, talvez por saberem que o regulamento municipal impede (ou
desaconselha) a substituição de nomes históricos oficialmente consagrados – ou,
mais provavelmente, por se lembrarem que essa artéria passaria a desembocar na
rotunda agora soarista, o que provocaria não poucos engulhos aos dois
adversários políticos, caso cá estivessem, vendo-se assim de braço dado, quase
aos beijinhos, na pública rotunda. Mas adiante. Confesso que gostaria de ouvir,
vinda das profundas, a voz cava do nunca desmentido devoto das práticas e
doutrinas soviéticas dizendo ao meu ouvido: “Olhe que não, olhe que não…” A
mais de duzentos quilómetros de Portalegre tenho todavia informações seguras de
que tal má nova é mesmo certa – verdade, verdadinha. E lamento. Funda e
fundadamente lamento!
Não
está em causa o mérito ou demérito das figuras que, agora, em vésperas de
eleições, um punhado de políticos do burgo quer reverenciar à custa da
identidade da urbe, nem sequer o facto de tais personalidades pouco ou nada
terem que ver com a cidade. Tiveram qualidades e defeitos como toda a gente.
Nalgumas situações contribuíram para o bem do povo, noutras prejudicaram-no e
noutras foram impedidos (graças a Deus!) de prejudicá-lo. Estão em causa os
critérios e os jogos políticos e sociais que movem a exaltação de Cunhal e
Soares e apagam, ao mesmo tempo, Fernando Pessoa (sim, esteve em Portalegre!), Humberto
Delgado, Salgueiro Maia, Matilde Rosa Araújo (sim, viveu na cidade!), Ramalho
Eanes, Amaro da Costa ou, até, para falar nos portalegrenses de nascimento ou
de coração, Soror Isabel do Menino Jesus, Eusébio Leão, Joaquim Miranda da
Silva, Pe. José Patrão, Carlos Garcia de Castro ou Carrilho da Graça... Está
sobretudo em causa o modo como se desrespeita e/ou menospreza com estas e
outras decisões a memória urbana e histórica de Portalegre, expressa no nome
legítimo dos seus lugares, criado pelo povo que neles viveu ao longo de séculos.
(Seria indigno, pergunto, o nome ancestral do local, “Moinho de Vento”?
Causaria brotoeja uma referência à Fábricas das Sedas que aí existiu?)
Estudei
com demora a toponímia da cidade e as motivações que a foram criando, alterando,
rasurando ou apagando. Vem tudo num longo artigo intitulado “Toponímias de
Portalegre: da Idade Média ao século XX”, publicado há uns anos no nº. 12 da
“Ibn Maruán – Revista Cultural do Concelho de Marvão” (hoje a necessitar de reedição
revista e aumentada). Sei bem o que valem as chamadas “comissões de toponímia”,
como são nomeadas, o que as move, a sua competência e os regulamentos que fazem,
desfazem e aplicam. Não esqueço a ligeireza do conhecimento que, salvo raras
excepções, possuem da História e da memória colectiva – e o (des)respeito que
têm por ela. Basta-me recordar muitas e muitas das suas incompreensíveis (ainda
que bem intencionadas) decisões – valorizando gente com escasso valor e
ostracizando os que deveras o tiveram. Chega-me relembrar pelo menos um dos
seus pretéritos membros (entretanto falecido) que, além de ter inventado uma
“Rua dos Aleatórios” na toponímia setecentista de Portalegre, defendia a
eliminação de grande parte dos nomes antigos como coisa bolorenta e pouco
civilizada… Já não me deixa, pois, boquiaberto a forma leviana e por vezes
caricata com que nomeiam as novas vias de circulação. Não me espanta, ainda,
que as mudanças toponímicas continuem a ser uma triste realidade, mesmo que a
população portalegrense não as queira – pois nunca sobre tal assunto foi, é ou será
consultada. Pelos vistos a salvaguarda, valorização e divulgação deste
património imaterial ainda não chegou à terra onde nasci (nem a boa parte do
nosso país, diga-se em abono da verdade). Com desgosto o escrevo.
Dir-me-ão
que as tentativas de rasura não são de agora, que as homenagens interesseiras
são já velhas. Têm toda a razão. Começaram, ainda que timidamente, no século
XIX, com o regime liberal. O nome das praças, das alamedas, das ruas, das travessas
e até dos becos passou a ser campo fértil de todas as propagandas, de todos os
interesses e de todas as vaidades. Houve é certo boas intenções, embora com
maus resultados. Graças a Deus nunca tivemos em Portalegre autarcas que durante
o seu mandato impusessem o seu nome a ruas e edifícios, como sucedeu noutras
terras do Alto Alentejo e do Entre Douro e Minho. Mas o fluído canino das
várias tendências políticas e de muitas vaidadezinhas individuais ou de grupo foi
manchando não poucos nomes ancestrais da nossa cidade e de quase todas as
terras do nosso país.
Ironia
das ironias, o povo (que nunca foi tido nem achado nessas artimanhas e
sobrancerias) esteve-se sempre lixando para os nomes novos, a não ser quando
atribuídos a espaços urbanizados de novo – e ainda assim nem sempre. Passados
muitos decénios (por vezes mais de um século) sobre essas alterações decretadas
pelo sectarismo político das vereações, continuou a usar os topónimos antigos.
Os exemplos em Portalegre são eloquentes. A rua Alexandre Herculano continua a
ser de Santo André, a 31 de Janeiro teima em ser dos Canastreiros, o parque
Miguel Bombarda, a avenida George Robinson e a rua de Olivença nunca deixarão
de ser Corredoura, a rua 5 de Outubro nunca abdicou de ser Direita, o largo 28
de Janeiro pertence ainda à Fonte Nova, a rua Mouzinho de Albuquerque apenas do
Pirão é chamada, não esquecendo a Luiz Barahona que do Castelo nunca se livrará,
a Cândido dos Reis que nunca esconderá o Cano, a Almeida Garrett que nos conduz
ainda ao Mercado (embora ele já esteja noutras partes), a França Borges que persiste
na sua referência ao Bargado, o largo Serpa Pinto que adoptou (demolida a
igreja da Madalena aí existente) a boneca de uma fonte...
A
lista poderia continuar, mas não vale a pena aborrecer os leitores. Convém
todavia registar com irónico agrado as designações populares bem recentes que
os sábios transeuntes vão já dando a outros lugares com urbanização
contemporânea, ignorando com orgulhosa altivez o desrespeito de que são alvo –
neste e noutros domínios – por uma boa parte dos seus representantes eleitos. Ou
alguém tem dúvidas de que a agora chamada “Rotunda Mário Soares” continuará a
ser para todos a tão simples “rotunda do navio”? Não tenho quaisquer dúvidas.
Afinal, nestes e noutros achados, “o povo é quem mais ordena”. Por mais que
isso provoque comichões nalguns que se têm como procuradores sobranceiros da
população.
(Texto publicado a 2/5/2019 no jornal portalegrense "Alto Alentejo"; foto de RV.)
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