quinta-feira, 2 de maio de 2019


… E A MEMÓRIA DA CIDADE QUE SE LIXE

Lê-se na página da sucursal portalegrense do Partido Socialista que, em Assembleia Municipal, fez aprovar – apenas com a abstenção do PSD – a atribuição do nome de Mário Soares à “popularmente conhecida rotunda do navio”. Parece que esta decisão já mereceu a concordância da comissão municipal de toponímia. Tanto quanto vim a saber, a sucursal concelhia do Partido Comunista Português, para não ficar atrás e cobrando, quiçá, o voto favorável dos seus eleitos, propôs ou vai propor que outra rotunda ou avenida ou rua lagóia venha a ter o nome de Álvaro Cunhal. (Se tal se concretizar, o que não duvido, teremos uma verdadeira geringonça portalegrense – só faltando o beco Miguel Portas ou João Semedo ou Francisco Louçã ou Catarina Martins ou Fernando Rosas para a trempe ficar completa...)
Ainda correu pela cidade e arredores que a ideia inicial dos comunistas era rasurar a designação “Avenida do Bonfim”, nascida do santuário homónimo onde tem início, tão querido das gentes da cidade onde nasci. Mas parece que a coisa ficou pelo caminho, talvez por saberem que o regulamento municipal impede (ou desaconselha) a substituição de nomes históricos oficialmente consagrados – ou, mais provavelmente, por se lembrarem que essa artéria passaria a desembocar na rotunda agora soarista, o que provocaria não poucos engulhos aos dois adversários políticos, caso cá estivessem, vendo-se assim de braço dado, quase aos beijinhos, na pública rotunda. Mas adiante. Confesso que gostaria de ouvir, vinda das profundas, a voz cava do nunca desmentido devoto das práticas e doutrinas soviéticas dizendo ao meu ouvido: “Olhe que não, olhe que não…” A mais de duzentos quilómetros de Portalegre tenho todavia informações seguras de que tal má nova é mesmo certa – verdade, verdadinha. E lamento. Funda e fundadamente lamento!
Não está em causa o mérito ou demérito das figuras que, agora, em vésperas de eleições, um punhado de políticos do burgo quer reverenciar à custa da identidade da urbe, nem sequer o facto de tais personalidades pouco ou nada terem que ver com a cidade. Tiveram qualidades e defeitos como toda a gente. Nalgumas situações contribuíram para o bem do povo, noutras prejudicaram-no e noutras foram impedidos (graças a Deus!) de prejudicá-lo. Estão em causa os critérios e os jogos políticos e sociais que movem a exaltação de Cunhal e Soares e apagam, ao mesmo tempo, Fernando Pessoa (sim, esteve em Portalegre!), Humberto Delgado, Salgueiro Maia, Matilde Rosa Araújo (sim, viveu na cidade!), Ramalho Eanes, Amaro da Costa ou, até, para falar nos portalegrenses de nascimento ou de coração, Soror Isabel do Menino Jesus, Eusébio Leão, Joaquim Miranda da Silva, Pe. José Patrão, Carlos Garcia de Castro ou Carrilho da Graça... Está sobretudo em causa o modo como se desrespeita e/ou menospreza com estas e outras decisões a memória urbana e histórica de Portalegre, expressa no nome legítimo dos seus lugares, criado pelo povo que neles viveu ao longo de séculos. (Seria indigno, pergunto, o nome ancestral do local, “Moinho de Vento”? Causaria brotoeja uma referência à Fábricas das Sedas que aí existiu?)
Estudei com demora a toponímia da cidade e as motivações que a foram criando, alterando, rasurando ou apagando. Vem tudo num longo artigo intitulado “Toponímias de Portalegre: da Idade Média ao século XX”, publicado há uns anos no nº. 12 da “Ibn Maruán – Revista Cultural do Concelho de Marvão” (hoje a necessitar de reedição revista e aumentada). Sei bem o que valem as chamadas “comissões de toponímia”, como são nomeadas, o que as move, a sua competência e os regulamentos que fazem, desfazem e aplicam. Não esqueço a ligeireza do conhecimento que, salvo raras excepções, possuem da História e da memória colectiva – e o (des)respeito que têm por ela. Basta-me recordar muitas e muitas das suas incompreensíveis (ainda que bem intencionadas) decisões – valorizando gente com escasso valor e ostracizando os que deveras o tiveram. Chega-me relembrar pelo menos um dos seus pretéritos membros (entretanto falecido) que, além de ter inventado uma “Rua dos Aleatórios” na toponímia setecentista de Portalegre, defendia a eliminação de grande parte dos nomes antigos como coisa bolorenta e pouco civilizada… Já não me deixa, pois, boquiaberto a forma leviana e por vezes caricata com que nomeiam as novas vias de circulação. Não me espanta, ainda, que as mudanças toponímicas continuem a ser uma triste realidade, mesmo que a população portalegrense não as queira – pois nunca sobre tal assunto foi, é ou será consultada. Pelos vistos a salvaguarda, valorização e divulgação deste património imaterial ainda não chegou à terra onde nasci (nem a boa parte do nosso país, diga-se em abono da verdade). Com desgosto o escrevo.
Dir-me-ão que as tentativas de rasura não são de agora, que as homenagens interesseiras são já velhas. Têm toda a razão. Começaram, ainda que timidamente, no século XIX, com o regime liberal. O nome das praças, das alamedas, das ruas, das travessas e até dos becos passou a ser campo fértil de todas as propagandas, de todos os interesses e de todas as vaidades. Houve é certo boas intenções, embora com maus resultados. Graças a Deus nunca tivemos em Portalegre autarcas que durante o seu mandato impusessem o seu nome a ruas e edifícios, como sucedeu noutras terras do Alto Alentejo e do Entre Douro e Minho. Mas o fluído canino das várias tendências políticas e de muitas vaidadezinhas individuais ou de grupo foi manchando não poucos nomes ancestrais da nossa cidade e de quase todas as terras do nosso país.
Ironia das ironias, o povo (que nunca foi tido nem achado nessas artimanhas e sobrancerias) esteve-se sempre lixando para os nomes novos, a não ser quando atribuídos a espaços urbanizados de novo – e ainda assim nem sempre. Passados muitos decénios (por vezes mais de um século) sobre essas alterações decretadas pelo sectarismo político das vereações, continuou a usar os topónimos antigos. Os exemplos em Portalegre são eloquentes. A rua Alexandre Herculano continua a ser de Santo André, a 31 de Janeiro teima em ser dos Canastreiros, o parque Miguel Bombarda, a avenida George Robinson e a rua de Olivença nunca deixarão de ser Corredoura, a rua 5 de Outubro nunca abdicou de ser Direita, o largo 28 de Janeiro pertence ainda à Fonte Nova, a rua Mouzinho de Albuquerque apenas do Pirão é chamada, não esquecendo a Luiz Barahona que do Castelo nunca se livrará, a Cândido dos Reis que nunca esconderá o Cano, a Almeida Garrett que nos conduz ainda ao Mercado (embora ele já esteja noutras partes), a França Borges que persiste na sua referência ao Bargado, o largo Serpa Pinto que adoptou (demolida a igreja da Madalena aí existente) a boneca de uma fonte...
A lista poderia continuar, mas não vale a pena aborrecer os leitores. Convém todavia registar com irónico agrado as designações populares bem recentes que os sábios transeuntes vão já dando a outros lugares com urbanização contemporânea, ignorando com orgulhosa altivez o desrespeito de que são alvo – neste e noutros domínios – por uma boa parte dos seus representantes eleitos. Ou alguém tem dúvidas de que a agora chamada “Rotunda Mário Soares” continuará a ser para todos a tão simples “rotunda do navio”? Não tenho quaisquer dúvidas. Afinal, nestes e noutros achados, “o povo é quem mais ordena”. Por mais que isso provoque comichões nalguns que se têm como procuradores sobranceiros da população.

RUY VENTURA 
(Texto publicado a 2/5/2019 no jornal portalegrense "Alto Alentejo"; foto de RV.)

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