SÃO DOMINGOS
DOS FORTIOS – UMA IGREJA A PRESERVAR
Entre as várias
dezenas de locais de culto cristão edificados no actual município de
Portalegre, a igreja de São Domingos tem um estatuto especial. Abandonada e
progressivamente arruinada desde há 90 anos a esta parte, continua a atrair a
atenção da população local, dos investigadores e dos interessados pelo
património religioso.
Há razões para tal.
Não podendo considerar-se um monumento cimeiro na arte nacional ou sequer
regional, possui ainda assim elementos materiais e imateriais que a elevam a um
estatuto ímpar, como edifício e como memória. Passadas nove décadas de erosão,
bem merece um restauro e uma reedificação que respeitem todos os valores que a
envolvem e que a ela estão subjacentes. Decerto não se descobrirá aí “o maior
tesouro junto que há no mundo” nem “os dous sinos muito grandes enterrados ao
pé de uma figueira alvar, cheios de ouro amoedado”. O tesouro é outro – e deve
ser preservado custe o que custar.
*
A igreja de São
Domingos, matriz de Fortios, situa-se a curta distância do cemitério da
localidade, sobrepondo-se a um conjunto de ruínas que, decerto, remontam à
época luso-romana. É ainda hoje fácil encontrar nas suas redondezas materiais
de superfície desses tempos e aí foram descobertas pelo menos duas inscrições
em caracteres latinos. Uma delas, datável do século I d. C., muito mutilada e
hoje desaparecida em local incerto do Museu Nacional de Arqueologia, está
estudada e pertencerá a uma estela funerária de um escravo liberto. A segunda,
ainda no local, tem gerado grandes dúvidas de leitura (“um texto assaz
sibilino”, escreveu José d’ Encarnação): estando escrita no alfabeto latino,
apresenta uma expressão púnica (língua falada pelos indígenas) que indica a
existência no local de uma albergaria (o que está de acordo tanto com a
passagem pelas proximidades de uma via romana quanto com alguns topónimos locais,
com a mesma origem semita).
As estruturas
existentes no local – há alguns séculos decerto mais visíveis do que agora –
intrigaram certamente quem as vislumbrava. Chegou-se a localizar aí a cidade de
Ammaia, por causa das “grandes ruínas de edifícios antigos e muitas pedras de
cantaria lavradas”, que foram interpretadas como “povoação grande” (Pe. Sotto Maior,
1616) ou, em alternativa, “algum Comvento” (Pe. Freire Tavares, 1758). Há
depois, ainda hoje, vestígios pétreos no edifício indicando que aos edifícios
luso-romanos deve ter sucedido alguma igreja (paleo-cristã, visigótica ou
moçárabe), anterior portanto à nossa nacionalidade. O orago São Domingos é assim
estranho à vista destes dados: ou se deve a uma substituição ocorrida nos
séculos XIII ou XIV ou, então, resulta da metamorfose do nome de uma divindade
anterior ao cristianismo.
*
A igreja que hoje
conhecemos, apesar de abandonada e meio-arruinada, permite-nos entender o que
foi a sua evolução a partir de finais do século XV. Deve resultar da reconstrução
total do edifício anterior à Reconquista Cristã em época indeterminada.
Se tivermos em conta o
tamanho da capela-mor, o templo não deveria ser grande, sendo com toda a
certeza apenas dotado de uma pequena nave e, talvez, de uma não maior sacristia.
Nessa capela guardam-se ainda vestígios de pelo menos duas fases decorativas,
em pintura mural: um retábulo fingido que deverá ser ainda de finais da Idade
Média ou de inícios do século XVI (sendo um dos exemplos mais antigos deste
tipo de arte na região, fazendo par com o retábulo da igreja de Santa Maria de
Marvão); e uma decoração em esgrafito, imitando silhares de pedra, que será do
período compreendido entre 1560 e 1575. Sobre esta decoração, foi instalado em
data indeterminada – mas decerto já no último quartel do século XVII ou inícios
de setecentos – um retábulo de marcenaria, pintura e escultura, hoje perdido,
mas de que restam duas tábuas (S. Bento e Sta. Maria Madalena, tendo
desaparecido uma com S. Miguel), atribuíveis ao pincel do pintor portalegrense
José Carvalho.
Não sabemos em que
data a igreja de Fortios – a que “os mouros chama[va]m S. Domingos da Penha”,
como refere o Pe. Diogo Sotto Maior – passou a ter estatuto paroquial. O
manancial de informação recolhido no excelente livro do Cónego Bonifácio
Bernardo (cuja leitura recomendo vivamente) indica-nos apenas que desde 1501 os
sacramentos eram administrados pelo pároco de Sta. Maria do Castelo de
Portalegre, sendo provável que a freguesia tenha sido criada por volta de 1575.
Não sabemos ainda em
que data a igreja passou a ter a largura que ainda hoje se verifica nem quando
se instalaram os altares colaterais dedicados a São João Baptista e a Nossa
Senhora do Rosário (antes com o título do Socorro). É provável que tenha sido
nesse último quartel de quinhentos ou já no século XVII, inícios, altura em que
se deu algum investimento artístico, visível por exemplo na interessante imagem
de Nossa Senhora com Menino, em pedra, proveniente das oficinas de Coimbra
dessa época. Terá sido nesse período que a parede sobre os retábulos
secundários e o arco da capela-mor recebeu pintura mural, que surge por debaixo
da cal. Em 1758 a sua aparência era a seguinte:
“[…] [tem] três
altares, maior e colaterais; no maior uma Imagem sagrada de Cristo na Cruz, ao
lado do Evangelho [São Domingos], ao da Epístola santo António. O colateral do
lado direito tem Nossa Senhora do Rosário em pedra mármore, aos lados o
Salvador do Mundo e são Macário; e o do esquerdo São João Baptista e ao lado
direito são Miguel. A capela-mor está de abóbada, e o mais corpo da Igreja se
sustenta em duas colunas de pedra de cantaria, e sobre elas e grosso das
paredes quatro traves, que pelo modo com que estão dividem a Igreja em três
naves […]”
Na segunda metade do
século XVIII, os altares colaterais receberam dois retábulos tardo-barrocos de
alvenaria pintada (que deverão ser preservados em futura reconstrução, pois são
bom exemplo de uma arte muito difundida, hoje estudada com atenção pelos
historiadores de arte). Já no século XIX, meados, foram retiradas as colunas
que dividiam a igreja, tornando-a mais ampla; nessa época, recebeu a igreja
várias imagens de santos, valiosas, provenientes de conventos extintos em
Portalegre, nomeadamente do convento de Santo António. A fachada, dotada de
pórtico de volta perfeita, em cantaria, datável de finais do século XVI,
possuía apenas um campanário. Só muito tardiamente recebeu uma torre sineira.
Em mau estado de
conservação, as diligências do pároco da época não conseguiram impedir a sua derrocada
parcial em 1925 e a transferência da sede paroquial para a pequena e
insuficiente igreja de São Sebastião, situada na aldeia dos Fortios. Houve
tentativas de reconstrução logo em 1926/27, chegando a ser reedificada e
alteada a torre, em 1929. O facto é que todas as diligências se goraram e
noventa anos depois continua numa triste ruína.
Espera-se que o futuro
lhe traga melhores dias. Se tal reconstrução ocorrer, como se deseja, ela deve
respeitar e restaurar todos elementos patrimoniais artísticos ainda
subsistentes, com a intervenção de técnicos especializados, devidamente
certificados. Será ainda uma boa ocasião para a arqueologia escavar tão rico
local. Certamente não perderá o seu tempo.
Ruy Ventura
(artigo publicado no jornal "Alto Alentejo")
(artigo publicado no jornal "Alto Alentejo")
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